Tuesday, February 02, 2010

MÁRIO CRESPO

Os intocáveis
O processo Face Oculta deu-me, finalmente, resposta à pergunta que fiz ao
ministro da Presidência Pedro Silva Pereira - se no sector do Estado que lhe
estava confiado havia ambiente para trocas de favores por dinheiro. Pedro
Silva Pereira respondeu-me na altura que a minha pergunta era insultuosa.
Agora, o despacho judicial que descreve a rede de corrupção que abrange o
mundo da sucata, executivos da alta finança e agentes do Estado, respondeme
ao que Silva Pereira fugiu: Que sim. Havia esse ambiente. E diz mais.
Diz que continua a haver. A brilhante investigação do Ministério Público e da
Polícia Judiciária de Aveiro revela um universo de roubalheira demasiado
gritante para ser encoberto por segredos de justiça.
O país tem de saber de tudo porque por cada sucateiro que dá um Mercedes
topo de gama a um agente do Estado há 50 famílias desempregadas. É
dinheiro público que paga concursos viciados, subornos e sinecuras. Com a
lentidão da Justiça e a panóplia de artifícios dilatórios à disposição dos
advogados, os silêncios dão aos criminosos tempo. Tempo para que os
delitos caiam no esquecimento e a prática de crimes na habituação. Foi para
isso que o primeiro-ministro contribuiu quando, questionado sobre a Face
Oculta, respondeu: "O Senhor jornalista devia saber que eu não comento
processos judiciais em curso (…)". O "Senhor jornalista" provavelmente já
sabia, mas se calhar julgava que Sócrates tinha mudado neste mandato.
Armando Vara é seu camarada de partido, seu amigo, foi seu colega de
governo e seu companheiro de carteira nessa escola de saber que era a
Universidade Independente. Licenciaram-se os dois nas ciências lá
disponíveis quase na mesma altura. Mas sobretudo, Vara geria (de facto
ainda gere) milhões em dinheiros públicos. Por esses, Sócrates tem de
responder. Tal como tem de responder pelos valores do património nacional
que lhe foram e ainda estão confiados e que à força de milhões de libras
esterlinas podem ter sido lesados no Freeport.
Face ao que (felizmente) já se sabe sobre as redes de corrupção em
Portugal, um chefe de Governo não se pode refugiar no "no comment" a que
a Justiça supostamente o obriga, porque a Justiça não o obriga a nada disso.
Pelo contrário. Exige-lhe que fale. Que diga que estas práticas não podem
ser toleradas e que dê conta do que está a fazer para lhes pôr um fim.
Declarações idênticas de não-comentário têm sido produzidas pelo
presidente Cavaco Silva sobre o Freeport, sobre Lopes da Mota, sobre o
BPN, sobre a SLN, sobre Dias Loureiro, sobre Oliveira Costa e tudo o mais
que tem lançado dúvidas sobre a lisura da nossa vida pública. Estes
silêncios que variam entre o ameaçador, o irónico e o cínico, estão a dar ao
país uma mensagem clara: os agentes do Estado protegem-se uns aos
outros com silêncios cúmplices sempre que um deles é apanhado com as
calças na mão (ou sem elas) violando crianças da Casa Pia, roubando carris
para vender na sucata, viabilizando centros comerciais em cima de reservas
naturais, comprando habilitações para preencher os vazios humanísticos que
a aculturação deixou em aberto ou aceitando acções não cotadas de uma
qualquer obscuridade empresarial que rendem 147,5% ao ano. Lida cá fora a
mensagem traduz-se na simplicidade brutal do mais interiorizado conceito
em Portugal: nos grandes ninguém toca.

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