Tuesday, October 28, 2008

A REVOLUÇÃO DIONISÍACA


Aqueles que tanto pregam a lógica, a racionalidade são os mesmos que nos impõem um sistema sem sentido que gira ao sabor das bolsas e dos mercados, entidades abstractas que obedecem a leis transcendentes sem lógica aparente, a não ser a própria rapina, o lucro, a especulação, a agiotagem. Aqueles que pregam o mercado são os mesmos que pregam a morte, ou seja, a vidinha quotidiana sem qualquer ponta de novidade que se reduz ao tédio, à rotina, à própria morte. A este estado de coisas opomos uma revolução dionisíaca, uma revolução sem dirigentes nem dirigidos, uma revolução que nasce do caos, que em boa parte prescinde da racionalidade, que vai ao espírito, ao Uno Primordial do Homem. Uma revolução que combate os grupos fechados, que age na vida quotidiana, que provoca esteticamente, que procura o Homem enquanto criador, enquanto poeta, que questiona o mundo do trabalho e do dinheiro. À morte opomos a vida, a vida autêntica, a busca do prazer não artificial, não consumista, o prazer criador, sem preconceitos. Os espíritos livres dionisíacos infiltram-se na sociedade de consumo e de mercado e combatem-na.

O MANIFESTO ENCAPuTADO


O MANIFESTO ENCAPuTADO

Não há gajas, só velhas. Depois da glória vem a pasmaceira. Valha-nos o sol lá fora. O que vale é que um gajo ainda se diverte com os amigos. Valha-nos isso. Ouvir e dizer umas piadas, rir, gozar com esta merda. É o que se leva daqui. A merda da revolução nunca mais vem. E um gajo passa a vida a olhar para as gajas. Cá estou de novo só na confeitaria. Toda a gente trabalha menos eu e o bêbado da aldeia. O que não deixa de ter o seu lado positivo. Os outros que trabalhem! Eu limito-me a escrever estas merdas. Os carros passam lá fora e eu escrevo. Escrevo para mim, para o mundo, para o raio que vos parta! Passo a vida a escrever sem disciplina, sem horários, sem objectivos concretos. Se calhar até vou ganhar o Nobel. Divirto-me a escrever, que querem? Em vez de andar para aí a remoer, escrevo. Em vez de andar à porrada, escrevo. Em vez de bater punhetas, escrevo. É fácil. A coisa sai. E só entram gajas feias e gordas. Queria escrever como Homero, como Shakespeare, mas só me saem estas merdas. E a coisa prossegue. Nunca escrevi tanto como agora. Escrevo compulsivamente, automaticamente, selvaticamente. Parece uma doença. Não me adaptei à vida mas adaptei-me à escrita. Acho piada àquela história da angústia perante a página em branco. Não sinto angústia nenhuma. E a página não está em branco. Sinto prazer- é o prazer que procuro desmesuradamente- Sinto-me em cima. Até parece que as depressões passaram à história. Oxalá seja verdade. Esta merda de escrever tem muito que se lhe diga. Mas a coisa vai fluindo. Há que saber matar com as palavras. Há que saber celebrar com as palavras. Há que fazer amor com as palavras. Deveria viver desta merda. Para quê fazer correcções? Há que deixar a coisa fluir espontaneamente, como um rio, como o mar. Na verdade, poucas gajas me entendem. Algumas vão lá, captam os meus escritos, riem dos meus disparates. Não me venham falar do Bloco de Esquerda! O Louçã tem muitas vezes razão mas é um chato, sempre inquisidor, sempre dono da verdade e da ética. Tenho lá alguns amigos. Mas deixei-me de partidos. O meu partido é o PSSL- Partido Surrealista Situacionista Libertário- de que sou o único militante. Há um blog. Estão abertas as inscrições. O que eu quero é criar um movimento artístico de base. Sem dirigentes nem detergentes, com vanguarda mas sem retaguarda, uma coisa que incomode mas que faça as pessoas rir. Que seja destrutiva e criadora. Que faça as gajas boas dar-me beijos na boca. Que rebente com o governo e que faça o povo rir. Eis o meu manifesto encapotado. Das gajas à revolução. Até as velhas podem participar. Posto isto, vou voltar a Homero.

COM A REVOLUÇÃO NA MINHA MÃO

COM A REVOLUÇÃO NA MÃO

Saio do metro com a revolução na mão
os outros permanecem acorrentados ao regime
metro-trabalho-cama
A rapariga solta os cabelos
e torna-se sexy
O Soares e o Alegre falam da refundação da esquerda
tijolos parem montras
grupúsculos de hereges queimam dinheiro nas ruas

O xamã sobe ao palco
benvindos à celebração!

O foco existe na confeitaria “Motina”
Vilar do Pinheiro
Estrada Nacional 13, Km 13
Dizem que o Che Guevara se encontrou
com o Marquês de Sade
Dizem que as milícias revolucionárias
se coligaram com as bacantes
Dizem que as velhas olham desconfiadas
para a mesa do poeta
Eh, pá! O gajo lê tantos livros!
Um deles era vermelho e tinha inscrita a palavra “revolução”
outro tinha mulheres nuas
que indecência!
Deve ser pornográfico
O melhor é avisar o presidente da Junta
e a GNR
não vá a coisa propagar-se
não vá aparecer mais gente a ler livros vermelhos e pretos
e pornográficos
e a gente a pensar que aquilo era só para bater umas punhetas
Até andam para aí a dizer que o capitalismo vai acabar
por causa da crise
que vai ser de nós?
Vêm para aí os guerrilheiros da Colômbia
e esses gajos todos
parece que são machistas-leninistas e anarco não sei quê
li no “Jornal de Notícias”
Vêm para aqui corromper a nossa juventude
incitar ao deboche
Diz que aprenderam com um grego chamado Sócrates
mas não é o ainda primeiro-ministro
esse é um ingénuo
não sabe de nada
temos de ser nós a agir
Irmãs, a situação é altamente preocupante
Falam também de outro grego chamado Dionisos
parece que é um deus que faz concorrência a Deus Nosso Senhor
dizem que passa o dia a beber
- desconfiai dos bêbados, minhas irmãs-
e que canta aí numas bandas satânicas de garagem
e que vai dançar para a floresta
com as depravadas das bacantes
que aparecem nos sites pornográficos
- afastai-vos dos sites pornográficos, minhas irmãs-
dizem que se dá com um tal de Nietzsche
que diz que ficou maluco
e que decretou a morte de Deus Nosso Senhor
esse tal de Nietzsche joga às cartas com um tal de marquês
não sei de quê
que anda sempre a olhar para as gajas
e que deles é o pior de todos pois tem um pacto
com o Grande Satã
mas diz também que andam para aí outros hereges que dizem
que querem queimar o dinheiro
o nosso rico dinheirinho que tanto nos custou a ganhar
devem estar feitos com os do Rendimento Mínimo
essa corja que não quer trabalhar
são como os poetas
não trabalham
não sabem o que a vida custa
querem viver à custa dos outros e da Segurança Social
é o que é
passa-se a vida a trabalhar
para esses gandulos nos virem queimar o dinheiro
até dizem que Nosso Senhor Jesus Cristo não usava dinheiro
ai! Nosso Senhor!
Onde isto vai parar?

Posto isto, a D. Rosa entra na confeitaria
e dá-me as boas tardes.




A.Pedro Ribeiro
in “Queimai o Dinheiro!”

Friday, October 17, 2008

NIETZSCHE


Contra as leis

Do meu pescoço, a partir de hoje
Pende o relógio das horas:
A partir daí cessa o curso dos astros,
O Sol, o canto dos galos e o evoluir das sobras,
O que uma vez me anunciava o tempo
Esta agora mudo, cego e surdo: -
Toda natureza para mim silencia
Ao tiquetaque do relógio e da lei.

Nietzsche -A gaia ciência


posted by Marcos William Santos | 8:10 PM

ARTE DO CAOS


As manifestações anti-globalização tomam as ruas, movimentos sociais, partidos políticos, garotos revoltados, a rebeldia não para de gritar por mais ar e liberdade. Mas algo me incomoda muito, e me faz pensar que as manifestações de rua nos moldes tradicionais, parecem sugar mais energia do que produzir.
As manifestaçoes de rua tem q ser reinventadas , nao estamos mais em 1917 ou em 1800 e tralala, hoje os dias sao outros , a informação chega a você no instante em que o fato ocorre, cansei de reuniões de elite sobre o que fazer , como se organizar, a terra nao se reúne com a semente pra combinar quando e como germinar , simplesmente acontece, o que eu vejo é a centralizaçao da revolta , da anarquia, da revolta anti-capitalista. Anarquistas se queixam dos partidários mas não fazem questão de se libertar de seus dogmas, enquanto o capitalismo evolui ,a resistencia só resiste,a resistÊncia permanece isolada em um mar sem novos ventos, alguns até parecem pequenos cubanos fieis a fidel sem saber, a resistência nao é fútil mas resistir apenas nao basta, eu faço aqui um apelo aos que dividem conosco a vontade de costruir algo melhor, como nômades tornemos a restistir de uma maneira inventiva e criativa; NÃO DEPENDA DA ELITE REVOLUCIONÁRIA MAIS PRÓXIMA DA SUA CASA, crie sua resistência , invente o seu novo mundo sonhado, aqui e agora, esqueça o periodo pré-revolucionário , nao espere a revolução chegar, só você conhece a sua realidade e sua vida, só você sabe como é andar pelas ruas , entao só vocÊ e seus amigos sabem como VOCÊS vão intervir nas avenidas e ruas caso isso ocorra ou passe pela cabeça de vocês, experimente ser que nem a nuvem, nao planeje sua chuva, chegue chovendo e molhando e alagando tudo...
As pessoas, o "sistema capitalista", já não assusta-se com alguns marginais na rua. É hora de reconquistarmos o asfalto, de uma maneira produtiva, e não cansativa, não como um rebanho mas como uma tribo.

E não vamos aqui falar o que vocês podem fazer ou não fazer , existem mil maneiras , invente uma ...

Toca e Marcos
"O que queremos de fato, é que nossas idéias voltem a ser perigosas"
Situacionistas


posted by Marcos William Santos | 7:41 PM
http://artedocaos.blogger.com.br.

Tuesday, October 14, 2008

MANIFESTO DO APOCALIPSE


O que eu realmente odeio é o espírito moedeiro, merceeiro. Essa coisa de sacar o lucro a todo o momento. A agiotagem, a sacanagem, a usura, a ganância, a mesquinhez. Pobres imbecis. Coitados. Não passais de uns pobres imbecis. Não sabeis que aquilo que é grande é a dádiva, a partilha, o amor? O homem não nasceu para trabalhar mas para criar, disse Agostinho da Silva. Bem, alguns nasceram para trabalhar. Coitados. Porque raio tudo há-de ter um preço? Quem inventou a merda dos preços? Quem inventou a merda da moeda? Quantos dormem na rua, quantos passam fome por causa da merda da moeda? QUAL É O PREÇO DA VIDA? DIGAM LÁ! FAÇAM AS CONTAS! É FÁCIL! 5 EUROS? 10 EUROS? 100 EUROS? 1000 EUROS? 5 CÊNTIMOS? QUANTO? DIGAM LÁ! QUANTO VALE A PORRA DA VIDA? QUANTO VALE A PORRA DA LIBERDADE? QUANTO VALE A PORRA DO AMOR? DIGAM LÁ OU PERGUNTEM A ESSES ECONOMISTAS DE MERDA, A ESSES FINANCEIROS DE MERDA, QUE FAZEM AS CONTAS TODAS, QUANTO VALE? Falais dinheiro, comeis dinheiro, cagais dinheiro? É isso que sois? É isso que quereis ser? É a isso que vos aceitais reduzir? Sois a Ana Dinheiro, o João Notas, a Marta Multibanco? Sois a vossa conta bancária? Ou sois seres humanos? Porra, por uma vez! NÃO BATEI PALMAS! NÃO QUERO PALMAS! SÓ QUERO A HUMANIDADE!

Sunday, October 12, 2008

NICANOR PARRA

TESTE



O que é um antipoeta:
Um comerciante de urnas e ataúdes?
Um sacerdote que não crê em nada?
Um general que duvida de si mesmo?
Um vagabundo que ri de tudo
Até da velhice e da morte?
Um interlocutor de mau caráter?
Um bailarino a beira do abismo?
Um narciso que ama todo o mundo?
Um brincalhão sangrento
Deliberadamente miserável?

Um poeta que dorme em uma cadeira?
Um alquimista dos tempos modernos?
Um revolucionário de bolso?
Um pequeno burguês?
Um charlatão?
................... um deus?
.............................. um inocente?
Um aldeão de Santiago do Chile?
Sublinhe a frase que considere correta.

O que é a antipoesia:
Um temporal em uma xícara de chá?
Uma mancha de neve em uma rocha?
Um açafate cheio de excrementos humanos
Como crê o padre Salvatierra²?
Um espelho que diz a verdade?
Um bofetão no rosto
Do Presidente da Sociedade de Escritores?
(Deus o tenha em seu santo reino)
Uma advertência aos poetas jovens?
Um ataúde a jato?
Um ataúde a força centrífuga?
Um ataúde a gás de parafina?
Uma capela ardente sem defunto?

Marque com uma cruz
A definição que considere correta.

GAJAS


Há gajas que, à falta de melhor, nos fazem escrever. É uma forma de descarregar a líbido. Mas as gajas brasileiras têm aquele jeito especial, aquele à vontade gingão que nos faz sonhar. Até falam da noitada anterior, do inferno, não sei bem a que inferno se referem. Esse jeito de ocupar o café todo com a conversa. Mas pronto. Começam a falar em empregos e trabalhos e fodem tudo! Está tudo fodido. Lá se vai a poesia. Bem, mas pronto um gajo às gajas perdoa tudo. Depois lá aparece o gajo com a conversa do tem que ser. E as gajas com sinais. Mal sabem que ando a escrever sobre elas. Se calhar, já desconfiam. Sabes lá o que vai na cabeça das gajas. Nunca saberás o que vai na cabeça das gajas. É esse o mistério, é esse o encanto. Agora foram lá para fora fumar. Até tens algum historial com as gajas dos cafés e dos bares. Escreves sobre as gajas e depois vais bater punhetas para casa. De vez em quando lá aparece uma que se interessa por ti, que gosta realmente de ti mas que depois fica cheia de dúvidas porque andas teso e dificilmente deixarás de andar teso se continuares assim. Tens 10 anos para arranjar uma gaja. Depois dos 50 será difícil a não ser que fiques realmente famoso, ó poeta de combate. Isto se chegares aos 50. Viste bem o que aconteceu aos teus amigos. Sais à noite para ver gajas e só os gajos é que vêm ter contigo, ó bardo underground. E, de repente, mamas à vista. Mamas à tua frente, ao teu lado, em todo o lado. Mas depois só vêm ter contigo os cromos do costume, os loucos, os psicopatas, os desenraízados. Alguns deles vêm-te falar do fim do capitalismo, da nova era, do caos global. Outros só falam de conas e mamas e comentam as conas e as mamas à beira das conas e das mamas e o Rocha sente-se envergonhado. Outros ainda vêm-me contar a vida toda como se viessem ao psiquiatra. A verdade é que estou a perder todos os preconceitos na escrita. Até as gajas feias vêm de mamas à mostra. Há 20 anos não era assim. Às vezes dizes que nasceste no século errado, no tempo errado mas, se calhar, tu é que andas errado. Se calhar este é o teu tempo, o teu século, ó poeta dionisíaco. Começas a ficar com a língua de fora, ó poeta dionisíaco. Terás as mulheres que quiseres, ó poeta dionisíaco. Fodes as gajas com os olhos e com a caneta, ó Dionisos. Agora sim, és sublime. Se calhar há já algum tempo que não se escrevia assim. Que importa se te publicam ou não se te sentes sublime. Abençoados os olhos que te deram, ó poeta imoral. Já não usas a razão. A caneta corre automática. Há fêmeas em vilar do Pinheiro, finalmente. Hoje é o dia. O dia da viragem. Nunca mais andarás teso. Nunca mais obecederás. Regressas hoje ao Uno Primordial. Fodes as gajas com os olhos e com a caneta. Mas ama-las. Todas as mulheres são tuas irmãs. Todas as mulheres são tuas irmãs. Irmãs, dai-me o vosso amor. Irmãs, dai-me o Amor. Dançai para mim em redor da fogueira. O mundo novo começa aqui. O mundo novo começa agora. À nossa frente abrem-se eternidades. Podemos ficar tão bem juntos, querida. Podemos ficar tão bem juntos. Amo-te com os olhos e com a caneta. Amo-te com os olhos e com a caneta. Criei-te. És minha. Criei-te. Vieste. És minha. Criei-te. Lês revistas. És minha. Nunca mais escreverei assim.

António Pedro Ribeiro.

Wednesday, October 01, 2008

OS BEATNICK EM PORTUGAL

Revista Gândara 1

LUSO-BEAT JAZZ


Miguel Martins

Surge este breve artigo na seqüência de gentilíssimo convite endereçado pela professora Izabel Margato, e dá continuidade a um trabalho iniciado há cerca de 12 anos (Martins, 1993), que se foi espraiando por artigos de natureza diversa e teve o seu desenvolvimento de maior envergadura no livro Jazz e literatura (Martins, 1998).

Por óbvias razões de contenção, abster-me-ei de elaborar sobre o conceito as origens e a evolução da beat generation norte-americana, geração esta, aliás, de créditos há muito firmados na História da Literatura (Cunliffe, 1989). Para uma excelente introdução a estes aspectos, bem como às obras dos seus autores mais destacados, sugiro a leitura da antologia organizada por Anne Waldman (1996), da qual constam informadíssimas bibliografia, filmografia e discografia com que dar seguimento a tal labor.

Quanto à repercussão deste movimento na literatura portuguesa, julgo essencial destacar dois períodos distintos:

Em primeiro lugar, o início dos anos 60, com uma série de jovens autores e declamadores reunidos em torno da microeditora Best-Sellers, dirigida por Jorge Daun, pseudónimo de José de Melo, responsável, desde logo, por Geração batida (Daun, 1963), a primeira antologia de textos beat publicada em Portugal. Entre esses enfants-terribles, avultavam o hoje realizador e crítico cinematográfico Lauro António e a hoje actriz Maria do Céu Guerra, cujo livro São mortas as flores (1963), escrito aos 18 anos, urge reeditar, quer pelo seu valor intrínseco, quer por sintetizar o brado de uma geração que, bafejada por ventos libertadores, vindos, sobretudo, do outro lado do Atlântico (o maio de 68 francês estava, ainda, longe de acontecer), não se deixava já espartilhar pela tacanhez do fascismo luso. Desta obra, cito:



Hoje peço arestas e ângulos agudos mas verdades inteiras.

Acabem com o morno e com os outros e com as mãos sem sol.

E guardem para vocês as repartições de finanças e os jornais.

(Guerra, 1963, p. 7)



Quanto ao segundo período referido, ocorre já depois do 25 de abril de 1974, em pleno processo revolucionário, e centra-se nas edições Távola Redonda, dirigidas por Manuel Cadafaz de Matos, e onde viriam a lume obras do próprio, bem como de João Carlos Raposo Nunes, António Cândido Franco, António Cabrita, Abel Neves e Levi Condinho, este último figura central da presente abordagem, conforme adiante se verá.

Contudo - e apesar de se excluir aqui qualquer pretensão inventariadora -, seria imperdoável não mencionar a obra de Andre Shan Lima, um outsider relativamente aos grupos mencionados, mas o mais assumidamente beat dos poetas portugueses e, porventura, o único a ser editado pela mítica City Lights Books, de Lawrence Ferlinghetti (Lima, 1987), poeta que, aliás, traduziu (Ferlinghetti, 1986). Do livro bilingue Valse de la memoire, cito:



sobrevoando a brisa

para ti oh menina realidade

o silêncio abre os olhos

a lâmpada ilumina-os

então sacudimos a cabeça

e afogamo-nos em álcool

in profundis

destilam-se deuses e revoltas

sobrevoando sem cor nem forma

voltamos ao nada

deambulamos em sapatos estranhos

arrancamos folhas das árvores

e fumamos muito (Lima, 1987, p. 71)



Bem assim, importa referir Jorge Fallorca, outro inquestionável beatnik. De A luva in love (1977, p. 40):



eu ia todo porreiro na minha e fui sequestrado por um coito -

que isto fique assente de uma vez para sempre - metido

num corpo com que não tenho nada a ver

E, ainda, Fernando Grade, de Também os beijos têm osso (1997, p. 32):

Era o bolor das árvores e das armas.

Ao fundo do tempo, as feras cantavam.

Faziam-se viagens por dentro das janelas,

onde os fósseis espiavam as raparigas.

Por trás das cadeiras a caverna era uma ideia de

seda, cheiro de fruta muito doce,

ácida verruga.

Os bodes também choram.

É possível que a erva cresça aqui.



E, por fim, Alexandre Saldanha da Gama, poeta 'expatriado', tal como Shan Lima. De Pastorinhas (1999, p. 72):


Saio sozinho para ir ao Sounds beber um copo

Noite de merda para ir beber um copo sozinho

Mas esta noite não suporto o silêncio da casa

A presença da ausência da Sylvie é pesada

Cada vez que ela aparece com as suas fanfarronadas

Faz de mim um ser miserável que precisa de beber para esquecer

Ela tem vergonha da minha companhia é por isso que só vem à

noite e desaparece de manhã

Quando saio à noite para beber um copo sozinho

Debaixo da chuva sou eu que tenho vergonha da minha companhia



Chegados a este ponto, e antes de penetrar na obra de Levi Condinho e, mais precisamente, na presença do jazz nessa mesma obra, é crucial esclarecer qual é a multímoda importância desta música para a escrita beat.

Essencialmente, diria que se verifica um fascínio pelo jazz, por parte dos beatniks, o qual conduz a constantes alusões a músicos e canções e, sobretudo, a um modus operandi similar ao destes, com a improvisação e o débito acelerados a sobreporem-se a uma arquitectura autovigiada e canónica e à valorização de uma certa rítmica possibilitadora de declamações plenas de musicalidade, quando não de facto musicadas.

Sobre Condinho, nascido em 1941, autor de, apenas, quatro títulos individuais, disse o músico e musicólogo Jorge Lima Barreto (1997, p. 169): "Levi Condinho, melómano esclarecido, escreveu poemas/metáforas sobre criações musicais". E eu próprio, alhures (Martins, 1998, p. 101), chamei-lhe "o mais torrencial dos poetas portugueses, em termos de alusões ao jazz". Se não, intentemos o rol dos músicos de jazz presentes na sua obra, utilizando a antologia poética que cobre o período que vai de 1965 a 2000 (Condinho, 2001): Miles Davis, Ella Fitzgerald, Ornette Coleman, Django Reinhardt, Archie Shepp, Glenn Miller, Count Basie, Jorge Lima Barreto, Lester Young, John Coltrane, Keith Jarrett, Louis Armstrong, Thelonious Monk, Duke Ellington, Anthony Braxton, Milt Jackson, Charlie Parker, Billie Holiday, Nat King Cole, Eartha Kitt, Mahalia Jackson, Pearl Bailey, Herbie Hancock, Cecil Taylor, Julian Adderley. Este conjunto é bem revelador do ecletismo do autor, no âmbito do jazz (ao que acrescem referências a compositores 'eruditos', antigos, clássicos e contemporâneos, bem como a músicos da pop e do rock). Assim, verificamos que cobre um espectro que vai praticamente dos alvores do jazz (Armstrong, Reinhardt) ao 'Free' (Coleman, Shepp, Barreto, Braxton, Taylor), passando pelo swing e pelo bebop. De igual modo, surgem, a par de figuras consagradas, nomes mais obscuros, como o de Pearl Bailey, vocalista para quem no "The Penguin Guide to Jazz on CD" (Cook et al., 1998) se encontram apenas duas entradas: uma em "The King Cole Trios Live: 1947-48" e outra em "Cootie Williams, 1941-1944".

Estas referências a músicos ocorrem por três ordens de razões: ou a mera evocação de memórias pessoais (um concerto, uma audição partilhada etc.), ou o louvor a músicos e à música, ou a sua ligação à luta anti-racista. Vejamos três exemplos do mesmo:

devaneios

as Tentações de Santo Antão do Bosch

nas janelas verdes

o ornette coleman em cascais

nós fornicando na Mata do Cabeço de Deus

o Quintelas bêbedo a beijar todos os amigos

Pierrot-le-Fou

beijar bocas de mulher por aí fora

Eugénio de Andrade Herberto Hélder

Cesário Verde José Gomes Ferreira

Paul Éluard etc etc

a Suzete a sorrir-me ao balcão

do banco da marinha grande

canto gregoriano à meia noite

frente a uma garrafa de vinho.

a minha avó a dizer-me que

Django Reinhardt era a música do demónio

- tinha eu 16 anos

o António Serafim a descrever

uma caldeirada no montijo

porra que não vou ser capaz de morrer

Miles Davis

a música Miles

é uma planície de neve

só a neve se vislumbra

e o frio atiça a capacidade de amar

tu ensinas o amor

e a planície

estendida

desvirginada

em patas de sangue vivo

clama amor negado

Basin Street Blues

Porque não vens daí comigo

Lá abaixo ao Mississipi

Canta Ella Fitzgerald

Respondo

Vou contigo

Se me levares aos bares

De Basin Street

E me mostrares tudo

O que fez na tua voz um vinho acre

Sexo nimbado de folhas silvestres

Para eu poder

Proclamar

de pé

do alto do Empire State Building

que a tua raça

se vingou

criando uma flor

em cada golpe de chicote

Levi Condinho: um beatnik português com muito jazz na poesia - um poeta a descobrir, de ambos os lados do Atlântico.


ReferÊncias bibliogrÁficas

BARRETO, Jorge Lima. Musa lusa. Lisboa: Hugin, 1997.

CONDINHO, Levi. Roteiro cego: antologia poética (1965-2000). Alcobaça: Rebate, 2001.

COOK, Richard et al. The penguin guide to jazz on CD. London: Penguin Books, 1998.

CUNLIFFE, Marcus. História da literatura dos Estados Unidos. Mem-Martins: Europa-América, 1989.

DAUN, Jorge. Geração batida. Lisboa: Best-Sellers, 1963.

FALLORCA, Jorge. A luva in love. Lisboa: Assírio & Alvim, 1977.

FERLINGHETTI, Lawrence. A boca da verdade. La Garenne: Edição do Autor, 1986.

GAMA, Alexandre Saldanha da. Pastorinhas. Paris: Albatroz, 1999.

GRADE, Fernando. Também os beijos têm osso. S. João do Estoril: Mic, 1997.

GUERRA, Maria do Céu. São mortas as flores. Lisboa: Best-Sellers, 1963.

LIMA, Andre Shan. Valse de la memoire. s.l.: City Lights Books, 1987.

MARTINS, Miguel. Beatniks portugueses. História, n. 171, dez.-jan. 1993.

______. Jazz e literatura. Porto: Campo das Letras, 1998.

WALDMAN, Anne. The beat book: poems & fiction from the beat generation. Boston: Shambala, 1996.

retirado de http://www.letras.puc-rio.br/Catedra/Revista/gandara_10.html