Saturday, May 30, 2009

DA SÍLVIA S. SILVA

«Queimai o Dinheiro»

Depois do estrondoso sucesso da «origem do mundo», as massas não resistiram ao apelo e rumaram aos jardins da livraria Centésima Página para queimar o dinheiro. Contudo, creio que caminharam em sentido contrário para a praceta onde se encontrava a equipa da SIC!



«Quem quer pouco, tem tudo, quem quer nada é livre;

quem não tem, e não deseja Homem, é igual aos deuses»
Ricardo Reis


Obrigada a todos pela vossa presença para a apresentação deste livro que, num momento em que a crise é uma palavra modal, desafia e contraria a lógica (pre)dominante! Indago como seria se este livro fizesse a apologia do açambarcai e reproduzi o dinheiro ou se se tratasse de um livro de auto-terapia sobre como não sucumbir ao endividamento e às hipotecas!


Já em 2005, o Pedro Ribeiro vaticinava que «o futuro já não é o que era/o futuro é agora»; «o país a arder/e eu também/o país a chorar/e eu a enlouquecer». Passados 4 anos, o país arde e chora penosamente, restando saber se a loucura do autor estabilizou ou regrediu!

Por defeito de formação, gosto de situar as minhas leituras segundo duas coordenadas: o tempo e o espaço. Neste caso, acresce uma terceira coordenada na medida em que o Pedro e eu perfilhamos da mesma formação em Sociologia, com o peso, por vezes, asfixiante da tradição francófona na qual o Bourdieu pontua como principal guru. Numa das lições inaugurais, Bourdieu (1996) advogava o papel do sociólogo como porta-voz, um messias, dos oprimidos e silenciados pela violência simbólica. Também neste livro, o Pedro advoga a sua boa nova, na esteira de uma poesia messiânica:

Não vim ao mundo para trabalhar
vim ao mundo para espalhar a Boa Nova
não de Deus nem de Jesus
mas do Homem
do Super-homem
dionisíaco
xamãnico
sem preconceitos
sem dinheiro
criador



O homem que não é lucro
que não é mercador
o novo homem
não-violento
não-predador
o homem novo
o Amor.


Na minha opinião, dificilmente o poeta pode aspirar ao estádio de profecias. A poesia não é praxis, quanto muito é um estádio de inconformismo permanente dado o sonambulismo real, e aspira a despertar consciências adormecidas, na senda da poesia militante tal como refere Vinicius de Moraes n'«O Haver»:

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

A propósito deste livro é curioso o paralelismo constante entre o amor e o dinheiro, que Marx denominava de «prostituta universal», e como o seu apelo pode ser encarado como uma espécie de despojamento, em sentido lato, da acepção restrita de Homo economicus. A este propósito, Morin (2007) esboçou uma antropologia da barbárie humana, tentando demonstrar que as noções de Homo sapiens, Homo faber e Homo economicus eram por si mesmas insuficientes: o Homo sapiens, dotado de espírito racional, pode ser ao mesmo tempo Homo demens, capaz de delírio, de demência. O Homo faber, que sabe fabricar e usar utensílios, é também capaz de produzir inúmeros mitos. Por sua vez, o Homo economicus, que se determina em função do seu próprio interesse, é também o Homo ludens, o homem do jogo, da despesa, do desperdício.

O Pedro Ribeiro prossegue a sua cruzada proferindo:

Acordai!
Sou o novo rei deste reino
Estoirai foguetes
Pilhai os bancos
Queimai o dinheiro!

Contudo, «não bateis palmas! Não quero palmas! Só quero a Humanidade!». O autor socorre-se das aporias povo versus trabalho e, aqui, é questionável a sua noção de Humanidade:

Porque raio terei eu de defender o povo quando o povo é imbecil e ignorante por culpa própria? O povo não tem consciência que anda a ser comido pela sociedade-espectáculo, pela especulação financeira, pelos media. Se não queres ler, o problema é teu! Não sabes o que perdes! Tenho pena dos que não sabem ler nem escrever, dos outros não. É tempo de acabar com a glorificação do povo, do povo trabalhador. Essas velhas bandeiras da esquerda e até de alguns libertários são obsoletas. O povo não merece ser glorificado. O povo rejeita o filósofo e o poeta, sobretudo quando eles aparecem com as vestes da pobreza. Ah, Nietzsche! Ah, Zaratustra! Como és sublime! Afasta-te do rebanho! Afasta-te da multidão! Eles não te merecem. Fala apenas com os poucos que te ouvem. Não trabalhes! Não te sujeites a chefes, a regras repressivas, ao Estado! Cria!

Já não estamos no contexto da revolução industrial mas sim da revolução digital e do que apelido de «geração refrigerante», que cultiva a descartabilidade e o imediatismo ancorados nas Novas Tecnologias - a fast thinking society. Curiosamente, sob o advento da sociedade em rede e dos baluartes da informação e do conhecimento, os integrados preconizam o regresso à economia simbólica e à troca directa. Temos à nossa disposição um manancial de aplicações e ferramentas online que nos proporcionam a integração em comunidades de interesses, de objectivos e a partilha de recursos. Uma das vias possíveis de fundamentar a coesão da comunidade assenta nessa partilha e a minha valorização como membro passa pelo valor dos recursos comungados. Contudo, a questão de partida impera: este individualismo em rede que fomenta os capitais relacional e cultural redunda, em última instância, no capital económico. A posse de um computador, de uma ligação à Internet, o mínimo de conhecimentos informáticos e da língua-mãe (Inglês) traduzem-se num quantitativo monetário.

Daí que, o autor prossiga nesse campo de simbolismos e metáforas:

O dinheiro é a causa de todos os males. O dinheiro é o único deus todo-poderoso que comanda as relações entre homens, entre instituições, entre países. O outro deus está morto. É da posse do dinheiro que nasce a intriga, a hipocrisia, o ódio, a competição, a desigualdade, a guerra, a filha da putice, a pulhice, a aldrabice. Enquanto existir dinheiro haverá sofrimento. O dinheiro pertence à morte, aos profetas da morte, aos mercadores. O dinheiro é a negação da vida, da liberdade e da humanidade. O dinheiro converte tudo em mercadoria. Tudo se vende, tudo se compra, nós próprios estamos à venda no mercado. O mundo é um gigantesco mercado. O capitalismo globalizado traz consigo a coroação do deus supremo a quem todos obedecem. Em nome da humanidade, em nome da liberdade, em nome do amor, acabemos com o dinheiro. Organizemos festins e motins. Queimemos o dinheiro! Queimemos o dinheiro na praça!

Confesso que nunca esperei por Godot e não vim aqui para profetizar ideologias ou propor alternativas! Mas reitero que, à luz do comunismo, o desaparecimento do dinheiro não significa o fim de todas as estimativas de custos. As sociedades e as acções humanas presentes, passadas e por vir são obrigatoriamente confrontadas com esse problema quer utilizem, ou não, símbolos monetários.

Professo, porém, do livre arbítrio que assiste a cada indivíduo, não obstante o peso das condicionantes sociais, e do campo de possíveis num mundo estatizado, mercantilizado e globalizado. O Pedro Ribeiro aponta precisamente uma das vias quando refere que:


Quero entregar a minha alma ao governo
deixar-me colectar em êxtase
amar-te ordeiramente
como um cidadão cumpridor
quero lançar uma OPA
em directo no Telejornal
imolar-me no mercado global.




Uma ideia tanto mais exequível pois, aqui ao lado, está uma equipa da SIC e o prime time televisivo noticia (quase) sempre o cidadão empreendedor e arrojado. Obrigada!



Referências:

Biblioteca Comunista. Um mundo sem dinheiro: O Comunismo. http://www.velhatoupeira.hbe.com.br/

Bourdieu, P. (1996). Lição sobre a lição. Vila Nova de Gaia: Estratégias Criativas.

Morin, E. (2007). Cultura e barbárie europeias. Lisboa: Instituto Piaget.

Publicada por Sílvia S. Sílvia em 15:12 0 comentários

Friday, May 29, 2009

PIOLHO

De novo, no "Piolho"
faz um sol do caralho
e olho para as pernas da loira
entra outra gaja e abana o cu
e passa uma punk
o Martins discute o centenário
vai ser uma festa de arromba
cerveja à borla
aos canecos como os da loira
lá de fora
não estou mal
mas sinto-me só
e volta a passar a punk
nesta vida muito tédio se passa
não aparecem os meus companheiros
o Simões das "putas", o Oliveira
e os outros caralhos.

Thursday, May 28, 2009

CANDIDATURA DO PSSL À CÂMARA DA PÓVOA DE VARZIM


O Partido Surrealista Situacionista Libertário (PSSL) e a Frente Guevarista Libertária (FGL) anunciam a candidatura do camarada António Pedro Ribeiro à Câmara Municipal da Póvoa de Varzim. O PSSL apresenta-se a eleições por considerar que o actual presidente da Câmara da Póvoa, Macedo Vieira, tem tido uma actuação pedante, pidesca e fascizante. Para Macedo Vieira qualquer um que lhe dirija um crítica é logo catalogado de esquizofrénico, sendo desde logo objecto de processo judicial. Macedo Vieira considera-se o detentor da verdade e o único benfeitor da Póvoa, o que, isso sim, revela tiques de esquizofrenia.

Macedo Vieira revelou tiques pidescos e fascizantes ao perseguir os blogues povoaonline e povoaoffline, hoje povoadevarzimonline, conseguindo a sua censura através dos tribunais, num processo sem par em Portugal. Macedo Vieira não sabe conviver com a crítica e com as oposições. A sua gestão é responsável pela edificação da estátua do Major Mota na Rua da Junqueira, uma homenagem a um fascista assumido, Comandante da Legião Portuguesa, o que constitui um atentado ao 25 de Abril. Macedo Vieira quer perpertuar-se no cargo, à imagem de outros autarcas e dinossauros exemplares como Mesquita Machado, Valentim Loureiro, Fátima Felgueiras, Avelino Ferreira Torres ou Isaltino Morais. Macedo Vieira é absolutamente cinzento. O PSSL toma o partido da vida contra o partido das grandes negociatas, dos empreiteiros, dos chicos-espertos, da bolsa, do mercado, do dinheiro. O PSSL entende que a vida deve ser vivida livremente, gratuitamente, sem autarcas providenciais nem merceeiros, nem controleiros.

António Pedro Ribeiro é poeta, performer e sociólogo e é autor dos livros "Queimai o Dinheiro" (Corpos, 2009), "Um Poeta a Mijar" (Corpos, 2007), "Saloon" (Edições Mortas, 2007), "Declaração de Amor ao Primeiro-Ministro" (Objecto Cardíaco, 2006) e "Á Mesa do Homem Só" (Silêncio da Gaveta, 2001).



Pelo Comité Central do PSSL/FGL,



António Pedro Ribeiro

tel. 965045714



http://partido-surrealista.blogspot.com

http://povoaonoffline.blogspot.com
No "piolho" as estudantes cantam que querem foder a toda a hora. No meio de cânticos estudantis banais as gajas gritam a coisa e incomodam os futeboleiros presos às pernas do Lisandro e à glória do FCP no ecrã. Gosto desse novo hedonismo regado em cerveja que despreza a ditadura do pontapé na bola. É pena que as estudantes se fechem nesses rituais e não abram as pernas aos poetas.

NIETZSCHE E MORRISON


E é a Nietzsche e a Morrison que volto sempre. É o rugido do leão: "Eu quero!" que me empurra para a vida. "Queremos o mundo e exigimo-lo, agora!". É este mundo que nós queremos, não o mundo do além das religiões. Queremos o céu na Terra, como dizia Henry Miller. Aqui e agora! Não podemos esperar pelo amanhã. É a pulsão vital que nos chama aqui e agora, não vamos esperar mais mil anos, não vamos esperar pelo amanhã que canta. Queremos a revolução, aqui e agora! Que se foda o futuro! Não somos seguidores dos economistas nem do ministro das Finanças que nos prometem dias melhores. Estamos fartos de promessas. Não podemos cair nas suas patranhas de profetas da morte. É o aqui e agora, é a vida aqui e agora que queremos. "Estamos fartos de esperar, cansados de tantos rodeios", cantou o Jim Morrison. Não seguimos ninguém mas também não queremos conduzir nem governar ninguém. Não precisamos de governos nem de Estados. Seguimos o caminho que conduz a nós mesmos, gostamos de vadiar, de andar sem direcção definida, de criar sem disciplina. Detestamos o rebanho, os que seguem um chefe, um Estado, uma lei, um mercado. Procuramos o super-homem, o menino, o bailarino, o deus que dança. Nada temos a ver com o quotidiano mesquinho e castrador do deus-dinheiro. Somos poetas, criadores, "caminheiros dos céus". Celebramos a vida, queremos que a vida seja um banquete permanente. Celebramos a mulher, a sensualidade, a volúpia, desconfiamos dos castradores, dos moralistas. Não somos moderados como os filósofos de Platão, não fomos feitos para governar nem para dirigir. Pregamos o amor mas também a raiva. Subimos ao palco como subimos à montanha. Comunicamos com os deuses e com os espíritos mas é este mundo que nós queremos.

ATRÁS DA LOUCURA

"'We want the world and we want it...Now!', gritou o Jim Morrison e todos os sinos, todas as missas, todas as convenções, todas as ilusões, todas as falsas convicções, todas as aparências, todas as conveniências, todas as normas, todas as infâncias acabaram ali, naquele momento(...). E, a partir daí, tive de ir sempre atrás da loucura, até hoje."António Pedro Ribeiro------

DIONISO CONTRA O MERCADO


BPI:4,6% BES:1,9% BCP:0,4% EDP Renováveis: 9,07% EDP-2,2% Galp Energia: 2,02% PT: -1,54% Sonae Indústria:-2,58%
O que é que isso me interessa? Em que é que isso contribui para a minha felicidade? Estou dependente de percentagens, de números que nada me dizem? Serei eu próprio um número, uma percentagem? Sou apenas um item nas contas do OGE ou nem isso? Ao que nós chegamos! Até quando esta ditadura das estatísticas, dos economistas? Por que raio me hei-de submeter a coisas assexuadas? Não, recuso-me a ser reduzido à condição de investimento! Não estou à venda no mercado! Tenho asco à palavra "mercado"! Tudo o que vem da lógica do mercado é podre, mete nojo! Não me venham falar em mercado! Enquanto o mercado prevalecer o homem não será homem! Não sou um sabonete! Não me vou deixar vencer pelo império dos sabonetes! Merda! Olho para o Arlindo e tenho pena. Sempre agarrado à caixa registadora! Sempre agarrado à merda dos trocos! Sempre escravo do mercado! Foi para isto que nascemos? Foi para isto que tivemos a benção da vida? Que porra de vida é esta? Percentagens e mais percentagens! Sócrates era uma percentagem? Nietzsche era uma percentagem? Henry Miller era uma percentagem? Por que raio se há-de um gajo entregar à mera sobrevivência e dar umas risadas, de vez em quando, para disfarçar? Por que raio não se há-de gozar esta merda na sua plenitude, sem estar sempre a fazer contas? Passamos a vida a fazer contas, dos benefícios e custos disto e daquilo sempre com a calculadora na mão e na cabeça. Que porra de vida é esta? É isto a vida? Porque raio não vem Dioniso? A única coisa que nos excita são as mulheres mas elas, na maior parte das vezes, são inacessíveis. Que prazer, que bem nos traz esta merda? Foi para isto que nascemos? Vá lá que ainda há pessoas que nos admiram, que gostam de nós mas, de resto,...mais valia andar sempre bêbado, sempre anestesiado para a realidade mas nem tenho a merda do dinheiro para isso! Ou, por outro lado, antes enlouquecer de vez. Sei lá, fariam pouco de mim. Foi para isto que vim ao mundo? Leio e escrevo, vou-me aguentando. Mas vim ao mundo para aguentar, para sobreviver? Esta merda não vem nos panfletos, nos programas dos partidos políticos. Os partidos que se preocupavam com estas merdas deixaram de se preocupar. Os partidos têm uma linguagem rasteira, superficial, eleitoralista, não vão ao fundo das questões, não vão ao essencial. O essencial é o combate entre a Vida e a sobrevivência, entre Dioniso e o mercado. Talvez o amor, o amor autêntico possa salvar esta merda.

QUERO O AGORA!


QUERO O AGORA!

Merda, não estou bêbado.
Não consigo ficar bêbado.
Já estou com saudades de uma boa bebedeira.
Carlos, traz-me mais uma!
Merda, já nem escrevo
sobre a merda do àlcool.
O álcool que me põe em cima.
A àgua e os sumos aos doentinhos.
O álcool para o Poeta.
Já estou farto de queixinhas.
Àlcool para o poeta!
A vida são dois dias.
Que importa o amanhã,
se amanhã posso estar morto
ou amarrado a uma cama.
Quero o agora!
Quero o agora!
Quero aqui, agora,
a felicidade e a glória!
Porque raio se há-de deixar
tudo para amanhã?
Que se foda o futuro!
Que se foda o amanhã!
Quero o agora!

A. Pedro Ribeiro, Vilar do Pinheiro, 6.11.2008

COMBOIO


Acabo de estar em Famalicão com a Cláudia. A Claudinha tenta perceber-me e percebe-me. Se não der para mais nada, dá para andar de mão dada ou de mão dádá. A gaja do lado dormita e mostra o rego das mamas. O revisor controla. Qualquer dia algum controleiro confisca os meus escritos. Ou alguma dama ofendida mete-me em Tribunal. O poeta infame passeia-se de mão dada com a Claudinha em Famalicão. As gajas boas entram na Trofa. O fim de semana está a acabar. O revisor percorre o comboio a controlar. Simpatizo mais com os revisores da CP do que com os "picas" do metro. Há outra postura. O mormon lê a Bíblia. Eu acabei a "Odisseia". Estou tão próximo dos outros passageiros que eles podem ler o que estou a escrever. Mal sabem que escrevo sobre eles. O mormon pousa a Bíblia. Outras agarram-se ás revistas. O que vale é que a gaja do lado está a dormir. Ñão deixava de ter piada uma discussão acerca do escritor que escreve. Uma revolta no comboio contra o escritor que escreve sobre as incidências de uma viagem de comboio Famalicão-Porto. Que querem? Dá-me para escrever. Não nasci assim mas tornei-me assim. Longe vão os tempos do Colégio da Trofa e dos liceus Sá de Miranda e Alberto Sampaio de Braga. No ano do Alberto Sampaio, 12º, comecei a ter com mais gente as conversas que só tinha com os meus melhores amigos do liceu: o Jorge e o Rui. Já falava então, sei lá, de coisas poéticas e filosóficas. Teria uma conversa interessante para as meninas. Comecei a pôr em causa o maniqueísmo do Rambo e de outras coisas. Comecei a ler livros. Depois, no 1º ano da Faculdade de Economia já lia muito. Enfim, o homem vai-se construindo. Era eu, então, um jovem promissor. Mas já lá estava a coisa do Morrison, a semente. Comecei a escrever algumas coisas de jeito. A querer mostrá-las. O que é feito desse rapaz? Do rapaz em quem os pais depositavam esperanças? Revoltou-se contra o número, revoltou-se contra a norma, revoltou-se. E nunca mais voltou a ser o mesmo.

5:29 Maio, 12

Faço anos. Abracei o António dos UHF e encontrei o Álvaro. Um concerto a abrir com o rock & blues dos Wraygunn a aguçar o apetite. São 5:29 e parto para o Porto. Apareci no "Jornal de Notícias" de 11 de Maio numa crónica do Sérgio Almeida. "Sem tibiezas, o autor de "Saloon" e "Declaração de Amor ao Primeiro-Ministro" critica o modo como o Homem é transaccionado, qual mercadoria sem valor, e afirma a repulsa por tudo o que contribui para o aniquilamento da individualidade, criticando de permeio os economistas, que tudo reduzem "à mesquinhez da conta, do orçamento, do défice". Faço anos. Com os UHF á mistura. Encontrei um brinco no relvado. Junto ao estádio municipal. O Braga espetou 5-0 no Belenenses. O comboio pára em todos os apeadeiros. Aveleda. "Quinta da Aveleda". Era bom. Daqui a bocado estou em Vilar do Pinheiro e vou xonar. "Os Putos Vieram Divertir-se". Com os UHF. E eu junto ao palco a curtir. Regresso a Braga dia 22 para apresentar o "Queimai o Dinheiro". Ofereci o "Um Poeta a Mijar" ao António. Tadim. A esta hora nem café há. Que se foda! O que importa é que estamos em cima. Ruílhe. A voz sensual da gaja. O revisor percorre o comboio. Antes revisores do que controleiros! Antes revisores do que senhores doutores. Ainda faltam muitas estações e não há nenhuma gaja de jeito. As gajas fazem greve a esta hora. Tenho o brinco no dedo. Bocejo. Precisava de um café. Amanhã, "Púcaros". Apresentação do livro do Jorge D' Além Mar. Vamos lá estar. Vamos dizer uns poemas dele. Couto de Cambeses. O revisor também está cheio de sono. Vamos tentar dormir.

BRAGA. BRASILEIRA


Regresso a Braga e à "Brasileira". Vim cá ver os UHF. Para a semana volto cá para apresentar o livro na "Centésima Página". Os senhores debatem a república e a página da necrologia. O POrto é tetracampeão. O Porto é sempre campeão. O personagem de outrora saúda-me. Este, ao menos, nunca deixou de me saudar. É mil vezes melhor estar aqui do que na "Motina". Aqui há gente. As ideias circulam. Há vida. E a cerveja flui. Os senhores analisam exaustivamente o jornal. Só falta aqui o Rocha para comentar o tetra. Mas isso seria no Porto, não aqui em Braga. Aqui em Braga a maioria é bracarense e benfiquista. As gajas boas e altas encostam-se ao balcão. Peço mais uma. Daqui a bocado vou abalar para as redondezas da universidade. Penso que são lá os concertos. A empregada é nova e simpática. Deu um chuto no meu guarda-chuva. Há sol lá fora. Escrevo e faço espectáculos. Escritor e artista de palco, eis a minha profissão. O sol está mesmo a bater. Entra um engravatado de livro na mão. Procura alguém. Olha para todos os lados. Não encontra ninguém. Senta-se. Olha! Afinal é o Código Tributário. E eu escrevo. Escrever é a minha vida. O Jaime já cá não está. E eu permaneço. Sou uma espécie de animal de palco. Bebo como Bukowski. Sem profissão fixa, sem fonte de sustento. Há dois anos vim cá ver "Maldoror" dos Mão Morta. No dia dos meus anos. Hoje venho ver os UHF. O personagem de outrora sai sozinho. Entra uma loira. Beija o amigo. Há sempre gajas boas na última página do "Correio do Minho". Entra o Cândido. Diz-me como funciona a porta do WC. A Gotucha só vem em Agosto. Coitada da Gotucha! Sempre infeliz. E eu aqui a abrir. O personagem de outrora desloca-se para a janela. Ao menos, está sempre a mudar de lugar. Tal como o senhor de gravata. Já é a terceira vez que vem cá hoje. Um gajo aqui encontra um filão para escrever. E a empregada tem piada. O senhor da república fala de óculos. Não há mamas que se prezem à vista. E eu fico a olhar para o antigo quiosque em frente, a "Helena Florista". Ao menos aqui em Braga há cacau, já o disse. E antes beber do que morrer. Até o gajo do "Vip" me comprou um livro. Talvez aqui as gerentes da "Brasileira" fizessem o mesmo, tal como o gerente do "Piolho". E já dava para um gajo se alimentar. Vou dar uma curva.

Wednesday, May 27, 2009


“Nestes tempos de crise das bolsas, dos bancos, dos negócios, nestes tempos de falência, de desemprego em massa, em que a vida perde o seu valor, a mensagem de Nietzsche e de Jim Morrison ganha uma actualidade única. Ao homem-mercadoria, ao homem-percentagem, ao homem-número, ao homem vencido, há que opôr o homem criador, o homem que diz sim à vida, não à vidinha da submissão, não à vidinha da rotina, não à vidinha do rebanho, mas sim à vida plena, à vida alegre, à vida autêntica. É possível passar do sub-homem ao super-homem se acreditarmos que, como disse Jim Morrison, isto não passa de um jogo, de um jogo imbecil. Se num desafio de futebol um jogador, uma estrela qualquer, decidir, de repente, pontapear a bola para fora e, pura e simplesmente, abandonar o campo toda a gente vai dizer: ponham esse palhaço na rua! Mas ele responde: ora, isto não passa de um jogo, da merda de um jogo, não sei porque lhe dão tanta importância. E o que temos de fazer é isso: abandonar o jogo, deixar que façam de nós escravos, imbecis. Temos de fazer alguns sacrifícios, seguir a nossa via ("solitário, segue o caminho que conduz a ti mesmo", diz Nietzsche), descurar a sobrevivência, abandonar a máquina mas o ganho será muito superior: tornar-nos-emos livres, poetas, filósofos, super-homens. Temos de nos juntar, fazer a revolução, mas não uma mera revolução política como a de 1917, como a de 25 de Abril, uma revolução global do espírito, das consciências. Teremos de ser até algo irracionais contra a pretensa racionalidade das bolsas, dos bancos, das empresas, da economia. TEmos de derrubar todos os governos. Destruir para construir. Começar do zero. Não ouçamos os jogos eleitoralistas e tácticos dos partidos políticos, dos sindicatos e das outras organizações. Sejamos nietzscheanos, morrisonianos. Punhamos à prova os limites da realidade. SEjamos doidos! Sejamos poetas! Superemos o homem, superemos o real. Construamos a vida. Sejamos afirmadores da vida. Afastemos a morte! Afastemos Deus, o capital e o dinheiro! Brindemos a Dionisos. Construamos o Céu na Terra, o Paraíso na Terra. O mundo é nosso. Não há regras. Não há limites. Queimemos o dinheiro! Queimemos a economia! Calemos para sempre os economistas. Sejamos, como disse Nietzsche, "decifradores de enigmas". Tornemo-nos deuses em vez de carneiros. Demos caos ao caos.” A. Pedro Ribeiro

A SOCIEDADE DA CRIAÇÃO


A Sociedade da Criação

Vivemos numa sociedade em que o dinheiro é Deus, uma sociedade de mercadores, de especuladores, onde somos reduzidos à condição de mercadorias que se trocam no mercado global.


A organização social capitalista conduz a que aqueles que são explorados se guerreiem uns com os outros, se invejem, se entreguem à competição desenfreada e a que adoptem uma atitude derrotista face à transformação da sociedade.


À sociedade da morte devemos opor, como propõe Raoul Vaneigen, uma sociedade que exalte a vida. Uma sociedade assente no humanitarismo e no desejo, no amor e não no ódio, que acabe com o dinheiro e com o mercado.


Uma sociedade assente na criação poética que vá de encontro à idade do ouro em que a vida era, nas palavras de Rimbaud, "um banquete em que todos os corações se abriam e em que todos os vinhos corriam".


E acrescenta Henry Miller: "não há alegria comparável à do criador, do poeta, porque a criação não tem outra finalidade para além de si própria".


E esse poeta é um xamã, um feiticeiro dionisíaco que canta e dança, que faz da arte uma festa e que torna ridícula a sociedade capitalista.

VDA ESTÚPIDA

VIDA ESTÚPIDA

Vida estúpida que um gajo leva
vida estúpida que um gajo leva
vida estúpida que um gajo leva
sempre a mesma merda
sempre a mesma merda
sempre a mesma merda
nada de novo
nada de novo
nada de novo
só o tédio
só o tédio
só o tédio
mostra-me a saída
mostra-me a saída
mostra-me a saída
para o prazer
para o prazer
para o prazer

NICO


Nico a cantar "The End"
belíssima
tem orgasmos ao piano
belíssima
a voz soturna
os olhos tristes
porque partiste?
Nico
o coração está vazio
o cigarro na mão
à espera do homem
Nico
esse jeito só teu
de arrastar a palavra
de interpretar a canção
os olhos brilhantes
à espera do Homem
belíssima
em transe
femme fatale.

A GLÓRIA


Finalmente a glória. Outra vez a glória. Anda um gajo meio descrente e vem a glória. Já que não vem o dinheiro que venha a glória. A glória dá-nos asas, faz-nos sonhar. Que somos capazes de tudo. Que somos os maiores. Por uns dias, por uns tempos. Só falta que as gajas venham. Só falta mesmo que as gajas venham e não preciso da merda do dinheiro para nada. Encontrei o ritmo certo. Há noites em que as coisas nos caem do céu. Literalmente do céu. Quero que as gajas me caiam do céu! Quero que a revolução me caia do céu! Que se foda a realidade mesquinha do dia-a-dia. Que se foda a vidinha!
Já se passaram eternidades desde que aqui estou
os ocupantes da mesa vizinha estranham
que um gajo esteja continuamente a escrever
em transe
ossos do ofício
Eu trabalho!-como diz o outro
trabalho mas não recebo
trabalho mas não recibo
o Alba escrevia nos bancos de jardim,
à luz dos candeeiros públicos, onde calhava
ainda não cheguei a esse ponto
ainda tenho dinheiro para ir ao café
e a alguns bares
e até há gajos a fazer teses
com os meus poemas.

A exuberância da empregada brasileira faz-me esquecer Sócrates e Platão. Como ela anda, como ela ginga. Finalmente alguma acção nesta terra. Morte ao tédio! Abaixo a pasmaceira! Até já tirei o casaco. Ai, aquele cu! Olha, agora desapareceu. Refugiou-se na arrecadação. Que se foda o futebol! O Sporting e o Porto que se enrabem um ao outro. Finalmente alguma acção. E a gaja não volta. Deve estar a masturbar-se. Estou a ficar como o Quim. Conas aos saltos! Conas aos saltos! Que se foda a televisão! Que se foda o big brother e a sociedade-espectáculo! um simples "olá!", a forma como disse "olá", o porte, a pose, a naturalidade, até me assustou! Que se fodam os futeboleiros da terra. Vou mijar.

Tuesday, May 26, 2009

DADA


DADA

Os burgueses consideram o dadaísta um monstro dissoluto, um canalha revolucionário, um bárbaro asiático, conspirando contra suas campainhas, suas contas bancárias, seu código de honra. O dadaísta engendrou armadilhas para tirar o sono dos burgueses...

O dadaísta transmitiu ao burguês sentimentos de confusão e de um estrondo formidável, se bem distante, que fez as campainhas dele zumbirem, seus cofres franzirem a testa e seu código de honra se reduzir a pontinhos.
"A Garrafa Umbilical" - por Hans Arp.

AO PÚBLICO

Antes de baixar entre vocês para arrancar seus dentes decadentes, seus ouvidos supurados, suas línguas cobertas de feridas,
Antes de quebrar os ossos pútridos de vocês,
Antes de abrir o ventre contaminado de cólera de vocês para usar como fertilizantes e o seu fígado, gordo demais, o seu esplin ignóbil e os seus rins diabéticos,
Antes de dilacerar os genitais feios de vocês, viscosos, incontinentes,
Antes de saciar o seu apetite de beleza, êxtase, açúcar, filosofia, pimenta e pepinos metafísicos, matemáticos e poéticos,
Antes de desinfetar vocês com vitríolo, de limpar e untar vocês com paixão,
Antes de tudo isso,
Tomaremos um grande banho anti-séptico,
Estamos prevenindo:
Que somos assassinos.

(Manifesto assinado por Ribemont-Dessaignes e lido por sete pessoas na demonstração do Grand Palais dos Champs Élysées, Paris, 5 de fevereiro de 1920.)

Todos Vocês estão acusados: levantem-se! De pé, como fariam para ouvir a Marselhesa ou Deus Salve o Rei...
Dada, sozinho, não cheira a nada; não é nada, nada, nada.
É como as suas esperanças: nada.
como o seu paraíso: nada.
como os seus ídolos: nada.
como os seus políticos: nada.
como os seus heróis: nada.
como os seus artistas: nada.
como as suas religiões: nada.

Vaiem, gritem, esmurrem meus dentes, e daí? Continuarei dizendo que vocês são uns débeis mentais. Daqui a três meses, meus amigos e eu lhes estaremos vendendo os seus retratos, por uns poucos francos.

(Manifesto canibal Dada, de Francis Picabia, lido na noite Dada do Théâtre de la Maison de I’Oeuvre, Paris, 27 de março de 1920.)

Os dadaístas acreditavam que o artista era o produto e o balangandã tradicional da sociedade moderna, por sua vez anacrônica e condenada. A guerra veio finalmente demonstrar a podridão da sociedade, mas, em vez de preparar-se para criar alguma coisa de novo, o artista foi mais uma vez envolvido pelos espasmos agônicos dessa sociedade. Ele constituía, portanto, um anacronismo cujo trabalho era totalmente irrelevante, e os dadaístas queriam provar em público essa irrelevância. Dada era uma expressão de cólera e frustração. Mas os dadaístas eram pintores e poetas, afinal e sobreviviam numa situação de paradoxal ironia, clamando pelo colapso de uma sociedade e de uma arte das quais eles mesmos se encontravam dependentes sob muitos aspectos, e que, ainda por cima, se haviam mostrado masoquistamente ansiosas para acolher Dada e pagar algum dinheiro em troca das suas obras, a fim de transforma-las também em Arte.

Os dadaístas escreveram inúmeros manifestos, cada qual representando o seu conceito de Dada segundo as cores do próprio temperamento. De que outra maneira poderiam exprimir cólera e frustração? Dada voltou-se em suas direções; de um lado para um ataque violento e niilista à arte, e, de outro, para o piadismo, a pose, a palhaçada. “O que chamamos Dada é uma arlequinada feita de nadas, que implica todas as questões fundamentais, um gesto de gladiador, uma peça cujos despojos apodrecem, uma execução de posada moralidade e plenitude”, escrevia Hugo Ball em seu jornal, Die Flucht aus der Zeit. Picabia e Man Ray produziram perfeitas obras dadaístas de agressão através de objetos como o Retrato de Cézanne: um macaco empalhado; ou Presente, um ferro de engomar comum, com pregos afiados soldados na base que, combinados com a sugestão de Duchamp para um readymade recíproco -Use um Rembrandt como tábua de passar roupa- funcionam como uma metáfora para Dada.

A Arte tornara-se moeda aviltada, coisa feita para o especialista, o conhecedor, que por sua vez se apoiava na tradição e no hábito. Jacques Vaché, que morreu por haver ingerido excesso de ópio em 1918, sem jamais ter ouvido falar de Dada, mas cujo caráter extravagante e cartas cheias de desespero e senso de humor iriam influir poderosamente nos futuros dadaístas parisienses, escrevia ao seu amigo André Breton em 1917: A arte não existe, é claro -daí ser inútil o canto- entretanto nós fazemos parte dela, porque é assim que as coisas são, e não de outra maneira... Logo, não gostamos nem de Arte, nem de artistas (abaixo Apollinaire) E COMO TOGRATH TEVE RAZÃO AO ASSASSINAR O POETA!. Picabia escrevia desrespeitosamente em Jésus-Christ Rastaquouère: “Vocês estão sempre procurando emoções já experimentadas, do mesmo modo que gostam de receber da lavanderia um par de calças velhas, que parecem novas para quem não as olhar com atenção. Artistas são tintureiros, não se deixem enganar por eles. As verdadeiras obras de arte moderna não são feitas por artistas mas por homens, simplesmente. Ou mesmo pelas máquinas, poderia ter acrescentado.

Quando Marcel Duchamp, em 1913, montou uma roda de bicicleta de cabeça para abaixo num banquinho, e em 1914 escolheu o primeiro readymade, um
porta-garrafas, no Bazar do Hôtel de Ville, deu-se o primeiro passo em direção ao debate que Dada iria alimentar efusivamente: este gesto do artista promovia o objeto ordinário, produzido em massa, a obra de arte, ou era o cavalo-de-Tróia que penetrava nas fileiras da arte para reduzir ao mesmo nível todos os objetos e obras de arte? Na realidade, estas são duas faces da mesma moeda. De qualquer modo, no princípio, os readymades ficaram espelhados pelo seu estúdio, e, quando ele se mudou para Nova Iorque em 1915, sua irmã jogou o Porta-garrafas justamente com o resto do lixo que ele havia acumulado. (Ele conseguiu outro depois).

Duchamp só denominou esses objetos de readymade na América, onde começou a destacar outros objetos manufaturados. O Próprio Duchamp quis deixar bem claro que não se tratava de transforma-los em objetos de arte. Explicou que a escolha do readymade dependia, em geral, do objeto. Era necessário resistir à “aparência”. É muito difícil escolher um objeto porque, depois de umas duas semanas, a gente começa a gostar dele, ou a odiá-lo. Temos que alcançar um estado de tamanha indiferença, que se torne impossível sentir emoções estéticas. A escolha de readymades baseia-se sempre na indiferença visual, assim como numa total ausência de bom gosto ou mau gosto... (Gosto é) um hábito: a repetição de uma coisa que já foi aceitas. Assim, os readymades eram exercícios destinados a evitar a arte (hábito).

Duchamp exibiu certa vez um readymade, Cabide, e o público participou inconscientemente do jogo, por não tê-lo reconhecido como peça da mostra ao pendurar nele seus casacos e chapéus. Numa recente exposição londrina Pioneiros da Escultura Moderna, a Roda de Bicicleta e o Porta-garrafas se mantiveram intactos e enigmáticos cinqüenta anos após, toda uma tradição de antiarte.

Duchamp interpreta igualmente os seus desenhos mecânicos (no início pinturas representando órgãos semelhantes a máquinas, como a Passagem da Virgem a Noiva e depois obras de crescente execução mecânica, com a conseqüente eliminação do interesse por suoerfície pictória movimentada, matéria densa, textura, etc., como em Moedor de Chocolate n.º 2, 1914) como formas de escapar à tirania do gosto. Estas pesquisas chegam ao ponto culminante com uma das pinturas mais deliberadamente obscuras e herméticas do século, a Noiva desnudada pelos seus Celibatários, mesmo, executada sobre vidro entre 1915 e 1923, quando ele a deixou .

Essa obra vem acompanhada de algumas notas de Duchamp, esclarecendo tratar-se de uma "máquina de amor" composta de duas partes: a superior, domínio da Noiva, a inferior, dos Celibatários. Cada parte foi escrupulosamente planejada de antemão (existem numerosos estudos dos elementos individuais), e depois colocada dentro de uma perspectiva muito rígida, quase idiossincrática, que possui o perturbador efeito, na metade inferior do trabalho, de fazer com que partes da máquina pareçam literalmente tridimensionais, ao mesmo tempo que sublinham a lisura e a transparência da superfície de vidro. Duchamp incorporou então o acaso a vários experimentos.

Por exemplo, deixou um vidro perto da janela aberta do seu estúdio em Nova Iorque durante muitos meses, para que apanhasse pó, que depois limpou (uma vez fotografado por Man Ray), deixando que as partículas permanecessem apenas nas peneiras, formas cônicas dispostas em meio círculo, onde ele fixou a poeira com cola.
Depois de 1913, exceção feita do único registro do readymades, Tu m’, de 1918, Duchamp abandonou para sempre a pintura convencional de óleo sobre tela. Em 1923 ele aparentemente abandonara toda atividade artística (à exceção de objetos isolados como Folha de Figueira Feminina e exposições surrealistas) preferindo jogar xadrex.

Seu silêncio constituiu talvez o mito mais poderoso e inquietante de Dada.

Entretanto, depois da sua morte, ocorrida em 1968, foi revelado que ele passara cerca de vinte anos, de 1944 a 1966, trabalhando secretamente numa assemblagem, um quarto chamado Uma vez que: 1 A queda d’água, 2 Gás de iluminação, que remetia, por sua vez, às anotações do Grande Vidro.

Duchamp e Francis Picabia haviam-se encontrado e se tornando imediatamente amigos íntimos no final de 1910. Picabia era efervescente, rico e totalmente niilista, e gostava do humor grotesco de Alfred Jarry. Duchamp era retraído, irônico e esotérico em suas predileções. Ambos procuravam um meio de se subtrair ao rótulo da vanguarda parisiense, predominantemente cubista, e ambos nutriam profunda aversão pela atitude de reverência em relação à natureza especial do artista. Em 1911, logo depois de contactar o principal porta-voz de vanguarda, o poeta Guillaume Apollinaire, ele assistiram à encenação de impressions d’ Afrique, de Raymond Roussel, que lhes pareceu um monumento ao humor do absurdo. (que pré-íncrivel coleção de objetos e máquinas (que pré-figura os melhores objetos surrealistas), há uma máquina de pintar, ativada pelos raios do sol, que resolve executar uma obra-prima. A desmitificação da obra de arte promovida por Roussel, e a destruição sistemática da ordem, através da busca do absurdo, reforçaram os seus objetos comuns. Os bizarros jogos lingüísticos que Roussel descreve Como Escrevi Alguns dos Meus Livros, não diferem muito da maneira esotérica com que Duchamp inicia a execução de suas obras.

Francis Picabia começou a fazer desenhos de máquinas por influência de Duchamp, desenvolvendo o potencial blasfematório da metáfora máquina /sexo. Ele conduziu o desenho da máquina a uma conclusão lógica em 1919, em Zurique, quando, muito adequadamente, desmontou um relógio, mergulhou cada uma das suas peças em tinta e as imprimiu no papel (página de rosto para Dada 4-5). Ele havia publicado seu primeiro desenho de máquinas na revista de Alfred Stieglitz, Câmera Work, por ocasião do Armory Show em Nova Iorque, 1913. O Armory Show fora a primeira amostragem da arte européia de vanguarda para o público americano, e o tumulto se formara em torno da pintura de Duchamp Nu descendo a escada. Quando Picabia e Duchamp chegaram da Europa a Nova Iorque em 1915, este já gozava de uma certa notoriedade. Picabia vinha incumbido, em comissão militar, de comprar molossos em Cuba, mas abandonou imediatamente a idéia. Eles se reuniram a um grupo de poetas e pintores igualmente contestatários, que incluía John Covert e Man Ray. Arthur Cravan aparecia entre eles intermitentemente.

Em Paris, fora autor de alguns panfletos cáusticos, chamados Maintenant, e uma vez desafiara o ex-campeão mundial de pesos-pesados, Jack Johnson, para uma desastrosa luta em Barcelona, conseguindo escapar mediante pagamento. Duchamp e seus amigos arranjaram-lhe uma série de conferências sobre arte moderna, destinadas a uma polida audiência nova-iorquina. Mas Cravan apareceu bêbado na primeira palestra, e, sem entender direito o que estava fazendo ali, começou a despir-se. Desapareceu sem deixar vestígio, quando procurava atravessar a remo o Golfo do México, infestado de tubarões.

O grupo não tinha conhecimento do europeu denominado Dada, assim batizado em Zurique, em 1916. Picabia foi a Barcelona por alguns meses, para se recuperar do excesso de bebida e de ópio, tendo ali produzido, em 1917, os primeiros números da sua revista itinerante 391, o periódico de melhor qualidade e maior duração dentre todos os que apareceram informados pelo espírito de Dada. As atividades do grupo de Nova Iorque tiveram o seu ponto alto com a publicação dos números de 391, em 1917, que coincidiram com um gesto espetacular de Duchamp.

Convidado para participar do júri de uma mostra na GrandCentral Gallery, que, seguindo o exemplo dos Indépendants de Paris, dava a qualquer pessoa o direito de exibir os seus trabalhos, Duchamp enviou para lá um vaso sanitário de porcelona branca com o pseudônimo de R. Mutt toscamente pintado num dos lados. Quando a peça foi rejeitada, ele pediu demissão do júri, e o incidente foi divulgado nos tablóides The Blind Man e Rongwrong.

Dadá em Zurique

Muita gente foi Dada por algum tempo, e o próprio Dada variou, dependendo do lugar, ocasião e pessoas nele envolvidas. Dada era essencialmente um estado de espírito, transformando pela guerra de descontentamento em náusea. Esta náusea foi dirigida contra a sociedade responsável pelos estragos da guerra e contra a arte e a filosofia, que apareceram tão impregnadas de racionalismo burguês, a ponto de se tornarem incapazes de criar novas formas, através das quais se pudesse veicular qualquer tipo de protesto. Opondose à paralisia a que esta situação parecia conduzir, Dada voltou-se para o absurdo, para o primitivo, para o elementar.

Dada foi batizado em Zurique em 1916, embora as circunstâncias -e a significação da palavra- ainda sejam discutidas. Richard Huelsenbeck, então um jovem poeta refugiado, afirma que ele e Ball descobriram a palavra acidentalmente num dicionário alemão-francês, e que o vocábulo infantil (que significaria cavalinho-de-pau) . A palavra foi adotada pelo grupo de jovens exilados, na sua maior parte pintores e poetas, abrigados na Suíça para se refugiarem da guerra num terreno neutro, e reunidos no cabaret Voltaire, um night-club literário organizado por Hugo Ball nos inícios de 1916. Houve por algum tempo muita discussão em torno do que seria uma arte nova, uma nova poesia, que revitalizasse uma linguagem gasta e aviltada.

Um membro do grupo, Hans Arp, a um tempo pintor e poeta, descrevia a situação: Em Zurique, em 1915, quando perdemos o interesse pelos matadouros da guerra mundial, nós nos voltamos para a belas-artes. Enquanto o trovão das abaterias ressoava a distância, fazíamos colagens, recitávamos, versificávamos, cantávamos, pondo a alma inteira nisso. Buscávamos uma arte elementar que pudesse, pensávamos, salvar a humanidade da loucura furiosa daqueles tempos. Aspirávamos a uma nova ordem, que restauraria o equilíbrio entre Céu e Inferno. Esta arte se tornou gradualmente objeto de uma geral reprovação. Surpreende que os bandidos na pudessem entender-nos? Sua mania pueril de autoritarismo leva-os a esperar que a própria arte sirva de instrumento para emburrecer a humanidade.

Os dadaístas de Zurique compreendiam Hugo Ball, Emmy Hennings, Hans Richter e Richard Huelsenbeck, da Alemanha, Hans Arp, da Alsácia, Marcel Janco e Tristan Tzara, da Romênia, e ocasionalmente o enigmático Dr. Walter Serner. As manifestação públicas de Dada tiveram lugar em noites de amotinação no cabaret Voltaire. Tzara descreve uma, no seu Diário Dada:

1916, 14 de julho. – Pela primeira vez em todo mundo. Waag Hall. Primeira noite Dada. - (Música, danças, teorias, manifestos, poemas, pinturas, figurinos, máscaras.)
Diante de uma compacta multidão Tzara demonstra, nós pedimos, nós pedimos o direito de mijar em cores diferentes, Huelsenbeck demonstra, Ball demonstra, Erklärung (Declaração) de Arp, meine Bilder (minhas pinturas) de Janco, eigene Kompositionen (composições originais) de Heusser, os cães latem e a dissecação do Panamá no piano e nas docas –poema gritado- gritaria e engalfinhamentos no hall, primeira fila aprova, segunda fila se declara incompetente para julgar, o resto berra quem é mais forte... Luta de boxe reassumida: dança cubista, figurinos de Janco, cada homem com seu grande tambor na cabeça, barulho, música negra/tabajá bonú ú úúúú/5 experimentos literários: Tzara de fraque, em pé, na frente da cortina... explica a nova estética; poema ginástico, concerto de vogais, poema ruidista, poema estático, arranjo químico de idéias, Biribum, biribum... poema vogal a a o, i e o, a i i...

Outra noite parecida com esta atingiu o clímax com a leitura do novo poema abstrato-fonético de Ball, O Gadji Beri Bimba. Trazendo por invólucro um apertado cilindro de papelão azul brilhante, com um comprido chapéu de doutor-feiticeiro listado de azul e branco, Ball teve que ser içado até o palco. Quando começou a declamar os sons sonoros, a audiência explodiu em risos, palmas miados. Ball agüentou firme, e levantando a voz acima da barulhada começou a entoar adotando a milenar cadência da lamentação sacerdotal: zinzin uralala zinzin uralala zinzin Zanzibar zinzala zam.

Era como se ilustrasse a descrição que fizera de Dada no seu jornal Die Flucht aus der Zeit: O que estamos celebrando é ao mesmo tempo uma cena bufa e uma missa de réquiem... Como a falência das idéias destruiu o conceito de humanidade até o seu último reduto, os instintos e as infraestruturas hereditárias estão agora emergindo patologicamente. Já que nenhuma arte, política ou fé religiosa parece adequada para represar esta torrente, restam-nos apenas a blaque e a pose ensangüentadas.

As obras de Dada devem a sua única existência real a atitudes, declarações públicas ou provocações. Tanto nas exposições como nas demonstrações (e a distinção entre estas não existia, do ponto de vista de Dada) o objeto, pintura ou construção Dada constituíam um ato que esperava por uma reação definida.

Como seria inevitável alguns dos experimentos dadaístas na poesia e nas artes plásticas parecem tomar emprestado, até certo ponto, as vozes de outros movimentos. O auto-Retrato Visionário, de Hans Richter, é uma obra expressionista. Dada se mostra, particularmente, povoando de ecos do futurismo italiano, na linguagem violenta de seus manifestos, e em suas experiências com ruído (bruitism) e a simultaneidade. A Procissão Fúnebre, Dedicada a Oscar Panizza, de 1917, do George Grosz dadaísta , e a pintura do futurista Carla Carrà Enterro do Anarquista Galli (1910-1911), sugerem um funeral que descambou para a baderna. As linhas dinâmicas a entrecruzar-se e as casas, luzes e pessoas que se interpenetram também ficam devendo ao conceito de simultaneidade, mais sofisticado, de Umberto Boccioni. Arp se referia, em termos futuristas, ao tantã dinâmico das marcadas diagonais das suas primeiras colagens abstratas. O Porto tísico de Arthur Segal, co a sua paródia das facetas cubistas também revela um débito para com o futurismo. Um estilo é, com freqüência, o artifício de que se lança mão para transformá-lo em sátira, em paródia grotesca. O Poema Simultaneísta de Tzara é um exemplo disso –um poema composto de versos banis em três idiomas, lido com o acompanhamento simultâneo de ruídos fora de cena, macaqueando a idéia de exprimir impressões simultâneas. As tentativas sérias e otimistas dos futuristas para retratar o dinamismo, ou o heroísmo, da vida moderno, constituíram uma presa fácil para os dadaístas, que consideravam como a mais fútil de todas essa tendência particular da atividade artística.

Houve, contudo, uma separação entre o artista na intimidade do seu estúdio e a sua pessoa como aderente às atividades públicas de Dada. Marcel Janco, por exemplo, realizava pesquisas experimentais como relevos de gesso puramente abstratos, ao mesmo tempo que fazia máscaras para as demonstrações Dada, que Arp evoca com alegria em Dadaland : Elas (as máscaras) eram aterrorizantes, a maior parte manchadas de vermelho cor de sangue. Com papelão, papel, crina de cavalo, arame e pano, você fazia seus fetos lânguidos, suas sardinhas lésbicas, seus ratos extáticos.

Arp era um dos membros mais leais do grupo; embora não tivesse muita afinidade com a violência a alarido do Cabaret, percebera de maneira definitiva o alcance, o valor e o significado de Dada.Neste particular, sua posição era muito semelhante à de Hugo Ball. Num ensaio chamado Fiquei Cada Vez mais Afastado da Estética, ele escreveu: Dada desejava destruir os enganos lógicos do homem para recuperar uma ordem natural, irracional. Dada queria substituir o absurdo lógico dos homens de hoje pelo irracional destituído de sentido. É por isso que tocamos com toda a força que pudemos o grande tambor de Dada e trombeteamos o elogio do ilógico. Dada aplicou uma lavagem intestinal na Vênus de Milo e permitiu que Laocoonte e seus filhos se aliviassem depois de milhões de anos de luta coma boa salsicha Píton. Filosofias valem menos, para Dada, do que uma escova de dentes velha, jogada fora, e Dada as deixa para os grandes líderes da humanidade. Dada denunciou as artimanhas infernais do vocabulário oficial do saber. Dada é para os sem-juízo, o que não é nada absurdo, Dada é como a natureza, desprovido de sentido. Dada é pela natureza e contra a arte. Dada é direto como a natureza. Dada é por um sentido infinito e objetivos definidos.

Descontente com a textura gorda da pintura expressionista, Arp começou a construir obras com linhas e estruturas simples. Fez várias colagens severamente geométricas, e também desenhos abstratos que Sophie Taeuber (com quem depois se casou) executou em tapeçaria ou bordado. Ele e Sophie trabalhavam sem conhecer as experiências similares de Mondrian com as linhas retas e os quadrados e retângulos coloridos, e foi apenas em 1919 que viram reproduções delas na revista holndesa De Stifil.

Uma das possíveis razões que quase tornou Dada em Zurique um movimento de arte moderna foi que a capital suíça, ao contrário de Paris, se chocava e se horrorizava diante de tudo que fosse novo em arte. Richter lembra a ocasião em que solicitaram a Arp e Otto van Rees que pintassem o sanguão de uma escola para meninas: De cada um dos lados do saguão da escola apareceram grandes frescos abstratos (os primeiros a serem vistos tão perto dos Alpes), executados com a intenção de consistirem uma festa para os olhos das menininhas e um signo glorioso do progresso da sua cidade para os cidadãos de Zurique. Tudo isto foi, infelizmente, mal compreendido. As famílias das menininhas se enraiveceram, os pais da cidade se tornaram furiosos com aquelas bolhas de cor que não representavam nada e que haviam maculado não só as paredes mas quem sabe o próprio pensamento das crianças. Ordenou-se que os afrescos fossem imediatamente substituídos por pinturas adequadas. O que foi feito, e Mães levando as crianças pela Mão aparecem nas paredes, enquanto o trabalho de Arp e Van Rees morria.

Arp logo abandonou a pintura a óleo sobre tela para utilizar outros materiais, como madeira, desenho, papéis cortados, jornal, partilhando freqüentemente com Sophie o desejo de distanciar-se do monstruoso egoísmo do artista, em função de um ideal de trabalho comunal. Descreveu ele alguns destes trabalhos como arranjados segundo as leis do acaso (embora pareçam cuidadosamente planejados, se comparados aos papéis rasgados dos anos 30). Rejeitamos tudo que fosse cópia ou descrição, permitimos que o Elementar e o Espontâneo reagissem em plena liberdade. Uma vez que a disposição dos planos e as proporções e cores acaso, declarei que essas obras, como a natureza, se ordenavam “segundo a lei do acaso”, o acaso constituindo para mim apenas a parte limitada de uma insondável raison d’être, de uma ordem inacessível em sua totalidade.

Na poesia que fez nessa época, Arp recorreu ao acaso de uma maneira mais radical, mais dada, colhendo a esmo palavras e frases de jornais e montando-as em poemas.

Alguns dos seus relevos em madeira eram feitos de pedaços de pau estragados, aparentemente lixo. Muitos dos relevos de 1916-17 foram deliberadamente deixados com a madeira sem pintura ou polimento, com cabeças de prego aparecendo. Outros relevos em madeira, com a Floresta e Tabuleiro de Ovos, receberam pintura brilhante e se compõem de forma altamente concentradas, que mais tarde se desdobrarão na abstração biomorfa das suas esculturas. Era uma morfologia flexível. Richter se lembra de pintar, com Arp, um enorme pano de fundo para demonstração Dada. Começando de pontas opostas, diz ele, nós cobrimos o rolo de papel com metros e metros de uma plantação de pepinos gigantes. O desenvolvimento de Arp em direção à abstração orgânica era enfatizado pelos desenhos automáticos com que ele fazia experiências na época, técnica que mais tarde seria retomada e sistematizada, com diferente motivação, pelos surrealistas.

Durante os dois primeiros anos em Zurique, Dada ainda era visto, particularmente por Ball e Arp, como passível de oferecer saídas para uma nova direção em arte. O propósito de restaurar a magia da linguagem em Ball, a busca de Arp pela objetividade, pode ser encarada desta maneira. Ball dizia: O concreto e o primitivo aparecem (ao dadaísta) nesta descomunal antinatureza, como o próprio sobrenatural.

Chegava a ser apresentado sob este prisma, de maneira pública. Tzara descreveria a revista de Zurique –Dada- quando a introduziu a Picabia, como uma publicação de arte moderna. Com a chegada de Picabia a Zurique, em 1918, no entanto, operou-se uma mudança radical. Os dadaístas nunca se haviam deparado com alguém que nutrisse pela arte tamanha descrença, e que evidenciasse de maneira tão aguda a falta de sentido da vida. Richter diz que, para ele, o encontro foi como a experiência da morte, e que, depois de reuniões semelhantes, os seus sentimentos de desespero eram tão intensos que percorria o estúdio chutando e furando os seus quadro. Tzara, o principal empresário e publicista de Dada em Zurique, sucumbiu imediatamente ao fascínio da personalidade dominadora e magnética de Picabia; e no seu famoso Manifesto Dadá 1818, coloca a sua incrível agilidade verbal a serviço do niilismo.

Filosofia, eis a questão: de que lado olharemos a vida, Deus, pensamento, ou que outro tipo de fenômeno? Tudo o que vemos é falso. Não considero o resultado relativo mais importante do que a escolha entre bolo e cerejas depois do jantar. O sistema de considerar com presteza o outro aspecto de uma coisa a fim de impor indiretamente uma opinião é chamada de dialética; em outras palavras, regatear em torno do espírito que anima as batatas fritas enquanto se baila um método ao redor delas.

Se eu gritar:
Ideal, ideal, ideal,
Conhecimento, conhecimento, conhecimento,
Bumbum, bumbum, bumbum,

Terei dado uma versão bastante fiel de progresso, lei, moralidade e várias outras excelentes qualidades que muitos homens altamente inteligentes discutiram em livros inumeráveis.

Dada em Paris

Foi o Manifesto de 1918, de Tzara (Escrevo um manifesto que não visa a nada, mas apesar disso digo umas tantas coisas, e em princípio sou contra manifestos e contra princípios), que conquistou André Breton e outros membros do grupo parisiense Littérature. Tzara chegou a Paris bem no principio de 1920, e imediatamente, com a ajuda de Picabia, Breton, os poetas Louis Aragon, Philippe Soupault, Georges Ribemont-Dessaignes e outros, lançou-se à divulgação, para um público maior, da revolta Dada, através de obras ultrajantes como Penas, de Picabia, por exemplo. A primeira demonstração Dada teve lugar a 23 de janeiro, no Palais dês Fêtes, e, como deu o tom às manifestação subseqüentes, vale a pena descreve-la pormenorizadamente. Uma palestra anunciada como "A Crise do Câmbio", por André Salmon, que atraíra os pequenos lojistas do bairro, desejosos de esclarecimento financeiro, revelou-se a demolição dos valores literários a partir do simbolismo. A audiência começou a debandar. Mas foi com a apresentação, feita por Breton, de alguns quadros de Picabia (Picabia nunca gostara de se apresentar no palco), que a coisa realmente começou. Uma enorme tela, sobre rodinhas foi empurrada para o palco, coberta de inscrições: alto, embaixo, e baixo, em cima, com o letreiro em grandes letras vermelhas, da piada obscena L.H.O. O. Q. (Elle a chaud au cul).

Quando os insultos principiaram a chover, o público começou a berrar, invectivando os manifestantes, e, depois de uma segunda apresentação da obra, deu-se a balbúrdia. Apareceu um quadro-negro coberto de mais letreiros, sob o título de Riz au Nez (Arroz no Nariz), que Breton imediatamente apagou com um espanador. Além de não se tratar de obra de arte, a proposta foi também destruída debaixo do olhar do público. O clímax da noite consistiu na aparição, no palco, de Monsieur Dada, de Zurique: Tristan Tzara, que passaria a exibir os seus trabalhos. Ele começou imediatamente a ler o último discurso de Leon Daudet na Câmara dos Deputados, acompanhado nos bastidores por Breton e Aragon, tocando campainhas com a maior energia. O público, que incluía personagens como Juan Gris, que comparecera para estimular a nova geração, reagiu com violência. Um editor de vanguarda começou a gritar: Voltem para Zurique! Paredão com eles!. Dada armara uma boa armadilha, e depois disso o público ficou prevenido.

Postado por David Rock

Marcadores: Dadaismo


retirado de http://esteticadoteor.blogspot.com

A POESIA É UMA ARMA?


A POESIA É UMA ARMA


Cultura

A poesia ainda é uma arma política?
Nos 35 anos da morte de Pablo Neruda, poetas reconhecem o declínio actual da literatura de intervenção
00h30m
SÉRGIO ALMEIDA
O que resta hoje da poesia de contornos políticos, de que Pablo Neruda foi um dos maiores cultores? Três poetas ouvidos pelo JN (Manuel Alegre, Humberto Rocha e António Pedro Ribeiro) realçam a sua importância mas advertem para os riscos.

"Arma carregada de futuro", conforme definição do espanhol Gabriel Celaya, a poesia sempre reforçou a sua importância nas grandes crises morais da Humanidade, altura em que a voz dos poetas adquiria uma ressonância mais forte e clara. Os tempos, todavia, não correm de feição para estes "legisladores sem lei do universo", de que falava Novalis, confrontados com uma sociedade- espectáculo cujos valores parecem estar nos antípodas morais dos seus.

A guetização crescente da poesia (circunscrita a tiragens que raras vezes ultrapassam as poucas centenas de exemplares) e a transferência da discussão para outros espaços, mais imediatos mas também mais voláteis, são alguns dos motivos que tornam improvável, hoje, o aparecimento de um poeta que desempenhe o papel de guardião moral do seu tempo, como aconteceu com Pablo Neruda, afirmam os autores ouvidos pelo JN.

Mesmo discordando do conceito - "toda a poesia, em última instância, é ideológica, porque não há neutralidade na poesia", diz -, Manuel Alegre admite que nos escritos das novas gerações de poetas os sinais de intervenção pública estão muito mais diluídos do que acontecia ainda há três décadas.

No entanto, recusa-se a ver no facto uma certidão de óbito antecipada da poesia que se coloca ao serviço de valores. "São ciclos. As circunstâncias também são diferentes, mas a nossa poesia é rica em autores com um elevado sentido cívico e político nos seus textos, como Sá de Miranda, Almeida Garrett, Miguel Torga ou Sophia de Mello Breyner", explica o autor de "Praça da canção", para quem "são precisamente os escritos de Neruda centrados na discussão ideológica aqueles que o tempo se encarregou de arrumar, em contraste com os poemas de amor, por exemplo".

Estará, então, a poesia que se empenha nas causas do presente, como aconteceu com a do poeta chileno, condenada a um rápido esquecimento? A questão está longe de gerar consenso. António Pedro Ribeiro, cuja obra inclui escritos tão mordazes como "Declaração de amor ao primeiro-ministro" ou "Queimemos o dinheiro", não tem dúvidas de que a poesia de cariz militante "faz hoje mais sentido do que nunca", citando como exemplo "as recentes crises da alta finança", que apenas vêm mostrar, afinal, que "o capitalismo desumano continua a ser o mesmo dos tempos de Pablo Neruda".

Autor de "Pão e circo", romance agora lançado pela Afrontamento, o poeta Humberto Rocha vê no cunho estritamente pessoal que caracteriza boa parte da poesia actual - em que a narração estrita do quotidiano substitui o questionamento moral e político - um sintoma "do vazio ideológico reinante". "Há uma vacilação entre a ficção e a representação do Eu como núcleo fundamental da estória dentro da História, conduzindo a uma vacuidade por exaustão do narcisismo decorrente", afirma o autor de "Esqueletos leiloados", convicto de que a poesia actual não pode ter um sentido vago ou impreciso, pois "uma das funções de quem escreve não é apresentar modelos, mas unificar a dispersão do humano enquanto ser singular mergulhado no caos que advém da sua própria condição humana."

Se a função do poeta se mantém, ainda que em novos moldes, exige-se, contudo, um "upgrade" do discurso, defende António Pedro Ribeiro: "Não podemos ler apenas Marx e ouvir Zeca Afonso, como alguns poetas ainda fazem".

Da lição de vida de Neruda - " o último gigante da liberdade total e impossível da poesia do século XX", define Humberto Rocha -, há a reter, sobretudo, "o poeta que cantou o amor como ninguém, mas também o seu exemplo revolucionária e a vida intensamente solidária", acrescenta António Pedro Ribeiro.



Jornal de Notícias, 23.9.2008

www.jn.sapo.pt

JIM MORRISON


Depois destes anos todos chego à conclusão que é com Jim Morrison que me identifico mais. Sucessor e leitor dos beatnicks, Morrison já dizia que "se a minha poesia pretende atingir alguma coisa, é libertar as pessoas dos limites em que se encontram e que sentem". Jim foi um revolucionário mas não um revolucionário tradicional. O poeta dos Doors apelou para o caos, não tinha uma cartilha pré-definida, não tinha de estar sempre lúcido nem de se portar sempre bem. Apelou para o caos porque entendia que era esse o caminho para a luz, para a liberdade. Deu ao rock a dimensão teatral. Era um xamã, aquele que entrava em contacto com os deuses e com a loucura. Não se contentava em cantar a paz e o amor como os hippies. Achava-os ingénuos. Queria chegar lá mas achava que tínhamos de atravessar o caos, "atravessar para o outro lado". Percorreu a estrada do excesso para alcançar a sabedoria, como indicou William Blake. Quis ultrapassar os limites. Entendia que a vida não se resume a uma fórmula única e irreversível, ao ganhar dinheiro. Revoltou-se contra a autoridade, contra a polícia. Foi um espírito livre, um menino e um bailarino no sentido nietzscheano.

DÁ-ME


Dá-me uma notícia para eu comer
dá-me um polícia para me proteger
dá-me uma arma para andar aos tiros
dá-me uma camisola da selecção
dá-me o sucesso por mais de três dias
dá-me uma nota para eu rasgar
dá-me uma gaja boa para namorar.

DEIXAR A BANDA PASSAR


Regresso após um dia em branco
após um dia a xonar
após os vómitos da cerveja
na ressaca do concerto
o comboio pára em Leandro
e avisto as mamas duma gaja
outra gaja lê ao fundo
e eu acabo de ler uma versão
de "Ricardo III" de Shakespeare
o poder que se alcança custe o que custar
a perfídia, a sordidez
"o meu reino por um cavalo"
o desespero final do rei
amanhã faço anos durante a noite
e vou ver os uhf a Braga
ao Enterro da Gata
hoje os "dragões" devem celebrar o título
e eu só espero fintá-los
fugir da multidão fanática
fugir do rebanho azul e branco
fugir, ficar só na noite
ir beber uns canecos a um tasco qualquer
deixar a banda passar
E a gaja varre o chão. Se arranjasse uma rapariga trabalhadeira talvez fosse feliz. Já dizia o Pessoa. Agora falam do barulho e da música alta na mercearia do lado. Ontem estive no rock e deu-me gozo. E até peço mais outra. A coisa continua a bombar. Mesmo aqui em Vilar do pinheiro num café quase deserto. Com a rapariga trabalhadeira a varrer.

Olha, chegou uma gaja carregada de livros. Coisa rara por estas bandas. Viva a leitura e a literatura! Vamos põr toda a gente a ler Platão, Shakespeare e Dostoievski. Vamos tornar-nos um país de intelectuais e eruditos. E esta merda está uma seca. Vou beber a outro tasco, a ver se há gajas boas.
Nesta altura do ano as gajas descascam-se todas e mostram as mamas. Um gajo vem ao café e quase tem erecções. É a vida. Antes assim do que o tédio do costume. É pena as gajas pertencerem a outros. Ou a nenhuns. E um gajo se mete conversa normalmente leva uma nega. Só se safa se for uma daquelas estrelas que toda a gente conhece. Ou então há aqueles gajos com muita lata, de conversa fácil, que sabem agradar logo às gajas. Eu sou daqueles que demora a carburar. é como quando estou em palco. A primeira canção vem a frio, depois vem a segunda e só à terceira é que começo a engatar e a improvisar. A coisa demora sempre a carburar. Esta merda, se calhar, deveria ser como na Idade da Pedra. Tudo ao molhe e fé em Deus. E pronto, lá se foram as mamas embora. Fico condenado a olhar para os bolos e para o jornal.

PARAÍSO PERDIDO


PARAÍSO PERDIDO:

Essa pátria remota que fica além da vida ali onde se reunirão um dia todos aqueles cujo reino não é deste mesquinho mundo.
(Nerval)

Não vim ao mundo
para agradar a toda a gente
não vim ao mundo
para receber as honras
e as palmas desta corte
nem venho com palavras conciliadoras,
às vezes até as uso
em conversas menores,
não vim ao mundo
para ganhar dinheiro
não faço amor com notas de cinco
e acho essa história do trabalho
e do sacrifício uma grande treta

Não vim ao mundo
para falar dos vizinhos
nem de automóveis, assaltos ou polícias
não vim ao mundo
para olhar para a TV
fartei-me de imbecilidades
sou o gajo que abandonou o jogo
por achar que ele era absurdo
que foi vaiado pelo estádio inteiro
e pelos próprios colegas de equipa
eu sou o gajo que nada tem a perder.


Vilar do Pinheiro, 19.9.2008

Sunday, May 24, 2009

FERLINGHETTI

DOIS VARREDORES DE RUA NUM CAMINHÃO, DOIS RICAÇOS NUM MERCEDES

Esperando a luz verde no sinal
centro de São Francisco, nove da manhã
um brilhante caminhão amarelo de lixo
com dois lixeiros de jaquetas plásticas
[ vermelhas
pendurados de cada lado do estribo traseiro
olhando para um elegante casal
num elegante Mercedes conversível
O homem
vestindo ótimo terno de linho de três peças cabelos louros até os ombros & óculos escuros
A jovem negligentemente penteada
saia curta e meias coloridas
a caminho de seu escritório de arquitetura
E os dois varredores acordados desde às Quatro
da Madrugada
sujando-se por todo o caminho
desde suas casas
O mais velho de cabelos crespos grisalhos
e corcunda
olhando para baixo como um
Quasímodo carrancudo
O mais jovem
também de óculos escuros & cabelos longos quase da mesma idade do chofer do Mercedes

Os dois varredores olhando fixamente
como se de uma longa distância
o lépido casal
como se assistindo a algum inodoro comercial
[ de TV
onde tudo é sempre possível

E a luz vermelha por um instante
manteve os quatro juntos na mesma cena
como se afinal alguma coisa fosse possível
entre eles
através daquele grande golfo
nos altos mares
desta democracia


[Tradução: Marcos A.P. Ribeiro]

FERLINGHETTI

SAUDAÇÃO

A cada animal que abate ou come sua própria
espécie
E cada caçador com rifles montados em
camionetas
E cada miliciano ou atirador particular
com mira telescópica
E cada capataz sulista de botas com seus cães
& espingardas de cano serrado
E cada policial guardião da paz com seus cães
treinados para rastrear & matar
E cada tira à paisana ou agente secreto
com seu coldre oculto cheio de morte
E cada funcionário público que dispara contra o
público ou que alveja-para-matar
criminosos em fuga
E cada Guardia Civil em qualquer pais que
guarda os civis com algemas & carabinas
E cada guarda-fronteiras em tanto faz qual
posto da barreira em tanto faz qual lado de
qual Muro de Berlim cortina de Bambu ou
de Tortilha
E cada soldado de elite patrulheiro rodoviário
em calças de equitação sob medida &
capacete protetor de plástico &
revólver em coldre ornado de prata
E cada radiopatrulha com armas antimotim &
sirenes e cada tanque antimotim com
cassetetes & gás lacrimogênio
E cada piloto de avião com foguetes & napalm
sob as asas
E cada capelão que abençoa bombardeiros que
decolam
E qualquer Departamento de Estado de qualquer
superestado que vende armas aos dois lados
E cada Nacionalista em tanto faz que Nação em
tanto faz qual mundo Preto Pardo ou Branco
que mata por sua Nação
E cada profeta com arma de fogo ou branca e
quem quer que reforce as luzes do espírito
à força ou reforce o poder de qualquer
estado com mais Poder
E a qualquer um e a todos que matam & matam & matam & matam pela Paz
Eu ergo meu dedo médio na única saudação apropriada

Prisão de Santa Rita, 1968

[Tradução: Nelson Ascher]

LAWRENCE FERLINGHETTI

O OLHO DO POETA OBSCENO VENDO...

O olho do poeta obsceno vendo
vê a superfície do mundo redondo
com seus telhados bêbados
e pássaros de pau nos varais
e suas fêmeas e machos feitos de barro
com pernas em fogo e peitos em botão
em camas rolantes
e suas árvores de mistérios
e seus parques de domingos no parque e estátuas sem fala
e seus Estados Unidos
com suas cidades fantasmas e Ilhas Ellis vazias
e sua paisagem surrealista de
pradarias estúpidas
supermercados subúrbios
cemitérios com calefação
e catedrais que protestam
um mundo à prova de beijo um mundo de
tampas de privada e táxis
caubóis de butique e virgens de Las Vegas
índios sem terra e madames loucas por cinema
senadores anti-romanos e conformistas
[ conformados
e todos os outros fragmentos desbotados
do sonho imigrante real demais
e disperso
entre esse pessoal que toma banho de sol


[Tradução: Paulo Leminski]

Saturday, May 23, 2009

NAMORO


Tomas café
sentas-te a meu lado
se calhar sabes que me atrais
que mexes comigo
agora que desci dos céus
agora que voltei a ser homem

e já não me apetece ler o Pacheco
não sou pior do que ele
em todos os sentidos
e tu pões-me doido
acaricias a chávena
falas
dizes a palavra
conversas com a amiga
e eu observo
cofio as barbas
apetece-me oferecer-te o poema
se estivesse com mais lata
oferecia-to
afinal de contas,
não sou qualquer um
tenho vários livros publicados

falas
moves a cabeça
e partes
vais fumar lá fora
à chuva
estes namoros de café já não se usam
ainda fico com má fama
mas não sou eu o poeta
que ainda há pouco estava nas alturas?

Voltas
falas baixinho
sabes que me atrais...


Vilar do Pinheiro, "Motina", 27.1.2009