Sunday, September 28, 2008
HAKIM BEY
«OS TONG
[…]
No Inverno passado li um livro sobre os Tong chineses (Primitive Revolutionaries of China: A Study of Secret Societies in the Late 19th Century, de Fei-Ling Davis) – talvez o primeiro escrito por alguém que não foi agente dos serviços secretos brritânicos! (na verdade, trata-se de uma socialista chinesa que morreu jovem – foi este o seu único livro) – e percebi pela primeira vez por que sempre me senti atraído pelos Tong: não apenas pelo romantismo, ou pelo elegante cenário da decadência chinesa, que lá estão – mas também pela forma, a estrutura, a própria essência da coisa.
Algum tempo depois, numa excelente entrevista de William Burroughs à revista Homocore, descobri que também ele se fascinara com os Tong e sugeria a sua forma como modo perfeito de organização para as bichas, sobretudo no actual período de histeria e moralismo merdosos. Acho que concordo, e estendo a recomendação a todos os grupos marginais, especialmente aqueles cuja fruição envolva qualquer ilegalidade (fumadores de erva, heréticos do sexo, insurreccionistas) ou alguma excentricidade extrema (nudistas, pagãos, artistas pós-vanguardistas, etc., etc.).
Os Tong podem talvez ser definidos como uma sociedade de benefício mútuo para pessoas com um interesse comum, que seja ilegal ou perigosamente marginal – daí o segredo necessário. Muitos dos Tong chineses tinham a ver com o contrabando e a evasão fiscal, ou com o domínio pessoal clandestino de certos comércios (em oposição ao controlo estatal), ou com objectivos de insurreição política ou religiosa (derrubar os Manchus, por exemplo – diversos Tong colaboraram com os anarquistas na Revolução de 1911). O propósito comum dos Tong era o de recolher os direitos de filiação e as jóias de inscrição e investi-los em fundos de apoio para os indigentes, desempregados, viúvas e órfãos dos membros falecidos, despesas de funeral, etc. Numa era como a nossa, quando os pobres ficam entre a espada cancerosa da indústria dos seguros e a parede do serviço público de saúde e assistência, que rapidamente se evapora, este propósito da sociedade secreta bem poderia recuperar todo o seu atractivo. (As lojas maçónicas foram organizadas nesta base, bem como os primeiros sindicatos ilegais e as "corporações de artífices" para trabalhadores e artesãos.) Um outro propósito universal de tais sociedades era evidentemente a convivialidade, e em especial os banquetes – mas mesmo este passatempo aparentemente inócuo pode revestir implicações insurreccionais. Nas várias revoluções francesas, por exemplo, as confrarias gastronómicas desempenhavam frequentemente o papel das organizações radicais quando todas as restantes formas de encontros públicos haviam sido banidas.
[…]
A estrita regra tradicional do segredo também precisa de ser modificada. Hoje em dia tudo o que escape ao olhar idiota da publicidade já é virtualmente um segredo. A maior parte das gentes modernas parece ser incapaz de crer na realidade de algo que nunca viu na televisão – por conseguinte, escapar ao televisionamento é já ser quase invisível. Além disso, aquilo que é visto através da mediação dos media torna-se de certa forma irreal e perde o seu poder. […] Em contraste, talvez aquilo que não é visto retenha a sua realidade, a sua raiz na vida quotidiana e, portanto, na possibilidade de maravilhamento.
[…] Muitas organizações não-autoritárias foram fundadas sobre o dúbio princípio da filiação aberta, que frequentemente conduz a uma preponderância de asnos, idiotas, salteadores, neurótticos e agentes policiais. Se os Tong se organizarem em torno de um interesse especial (nomeadamente um interesse ilegal, ou arriscado, ou marginal) terão certamente o direito de se acomodarem segundo esse princípio de "grupo de afinidade". Se o segredo significar a) evitar a publicidade, e b) vetar possíveis membros, a "sociedade secreta" dificilmente poderá ser acusada de violar os princípios anarquistas. Efectivamente, tais sociedades possuem uma longa e honrosa história no movimento anti-autoritário, desde o sonho de Proudhon, reanimar os tribunais nocturnos irregulares como forma de "justiça popular", até aos vários esquemas de Bakunine e à coluna de Durrutti. Não deveríamos permitir que os historiadores marxistas nos convençam de que tais expedientes são "primitivos" e foram, portanto, ultrapassados pela "História". O carácter absoluto da "História" é, quando muito, uma proposição dúbia. Não estamos interessados num retorno ao primitivo, mas num retorno do primitivo, atendendo a que o primitivo é o reprimido.
Nos velhos tempos as sociedades secretas surgiam em espaços e tempos proibidos pelo Estado, i. e., onde e quando as pessoas haviam sido afastadas pela lei. No nosso tempo, as pessoas não são habitualmente afastadas pela lei, mas pela mediação e a alienação. O segredo torna-se assim uma fuga à mediação, ao passo que a convivialidade passa de propósito secundário a primário na "sociedade secreta". Um simples encontro face a face é já uma acção contra as forças que nos oprimem por meio do isolamento, da solidão, pelo transe dos media.
Numa sociedade que obriga a uma ruptura esquizóide entre o Trabalho e o Lazer, todos nós experimentámos a trivialização do nosso "tempo livre", tempo que não está organizado como trabalho nem como lazer. ("Férias" significou outrora tempo vago – agora significa tempo organizado e preenchido pelo lazer industrial.) O propósito "secreto" da convivialidade na sociedade secreta transforma-se então na auto-estruturação e autovalorização do tempo livre. Boa parte das festas dedica-se apenas a música em alto volume e bebida em demasia, não porque o apreciemos mas porque o Império do Trabalho imbuiu em nós o sentimento de que tempo vago é tempo perdido. A ideia de convocar uma festa para, digamos, fazer uma colcha ou cantar madrigais em grupo parece irremediavelmente fora de moda. Mas os Tong modernos acharão simultaneamente necessário e agradável retirar o tempo livre ao domínio do mundo das mercadorias e devotá-lo à criação partilhada, à brincadeira.
Conheço já diversas sociedades organizadas nestes termos, mas não irei certamente quebrar o seu segredo ao discuti-las aqui. Existem algumas pessoas que não precisam de quinze segundos no Jornal da Noite para validarem a sua existência. Evidentemente, de qualquer forma a imprensa e a rádio marginais (os únicos media em que este pequeno sermão irá aparecer) são praticamente invisíveis – certamente ainda muito opacas ao olhar do Controlo. No entanto, há o princípio da coisa: os segredos devem ser respeitados. Nem todos precisam saber tudo! Aquilo que mais falta ao século XX – e aquilo de que ele mais precisa – é tacto. Queremos substituir a epistemologia democrática pela epistemologia dadá. Ou se está no mesmo barco ou não se está no barco.
[…] O imediatismo não se preocupa com as relações de poder; nem deseja ser governado, nem governar. Por conseguinte, o Tong contemporâneo não aprecia a degenerescência das instituições em conspirações. Pretende poder para os seus próprios propósitos de mutualidade. É uma livre-associação de indivíduos que se escolheram mutuamente para sujeitos da generosidade do grupo, para a sua "expansividade" (para usarmos um termo Sufi). Se isto resulta em algum tipo de "elitismo", pois que o seja.
Se o Imediatismo começa com grupos de amigos que tentam não apenas vencer o isolamento mas também melhorar a vida de cada um, em breve pretenderá assumir uma forma mais complexa – núcleos de aliados mutuamente escolhidos, trabalhando (brincando) para ocupar cada vez mais tempo e espaço fora de todos os controlos e estruturas mediadas. Depois quererá transformar-se numa rede horizontal de semelhantes grupos autónomos – depois, numa "tendência" – depois, num "movimento" – e depois numa rede cinética de zonas autónomas temporárias [T.A.Z.]. Esforçar-se-á finalmente por se tornar no cerne de uma nova sociedade, fazendo-se nascer a si mesma dentro da casca corrupta da velha. Para todos estes propósitos, a sociedade secreta promete fornecer um enquadramento útil de clandestinidade protectora – um manto de invisibilidade que só terá de ser abandonado no caso de um confronto final com a Babilónia da Mediação…
Preparemo-nos para as Guerras Tong!»
[in Zona Autónoma Temporária: Lisboa, trad. Jorge P. Pires, frenesi, 2000]
Selecção de PCD
in http://frenesi-livros.blogspot.com
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