Tuesday, September 23, 2008
GÉRARD DE NERVAL
revista de cultura # 63
fortaleza, são paulo - maio/junho de 2008
Gérard de Nerval aos 200 anos
Claudio Willer
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Que ano de efemérides, 2008. Uma delas, evocando Gérard Labrunie, na literatura Gérard de Nerval, que nasceu em Paris a 22 de maio de 1808.
Por isso, ia extrair algo do capítulo sobre Nerval, da minha recente tese de doutoramento, Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna. Mas o que vem a seguir é a reprodução desse capítulo quase na íntegra, apenas reduzindo as interpretações específicas de seu gnosticismo, e tornando menos universitárias as notas, referências bibliográficas e um ou outro parágrafo mais voltado para questões de teoria literária. Resulta um ensaio algo pesado para o meio digital, talvez. Mas Nerval merece, inclusive para sugerir sua complexidade e destacar sua condição de poeta que apenas começa a ser estudado.
Mesmo levando em conta sua adoção precursora por Breton e a atenção que lhe dá Octavio Paz em Os Filhos do Barro (Los Hijos del Limo), Nerval ainda nos oferece um colossal território a ser percorrido. Isso, reconhecendo o valor das interpretações simbólicas, de fundamentação esotérica, como as de Richer. Ou, mais recentemente, algo como Le Rebis… De Gérard de Nerval a Raymond Roussel, de Richard Khaitzine, em uma publicação, da Apenas Livros de Portugal, da qual também tive a satisfação de participar. [1]
* * *
Cronologicamente, Nerval corresponde a um final e a um início. Ao final de um ciclo: nascido em 1808, seis anos mais novo que Victor Hugo e treze anos mais velho que Baudelaire, faz parte da última geração romântica francesa, aquela dos “Jeune France” liderados por Petrus Borel, freqüentadores do Petit Cénacle, que participaram da “Batalha do Hernani” em 1830 (para essas e outras informações, Nerval, Gérard de, Oeuvres complètes, org. Jean Guillaume, Claude Pichois e outros, Éditions Gallimard, Paris, vol. I, 1989, vol. II, 1984; vol. III, 1993, Gallimard, Paris). E a um início: aquele do verdadeiro romantismo francês, não só pela tradução, aos dezenove anos de idade, do Fausto (elogiada pelo próprio Goethe). Foi o tradutor e difusor na França de românticos alemães, reunidos na coletânea Poésies allemandes; e, em especial, um leitor da vertente onírica e fantástica de Hoffmann e Jean-Paul.
A tese de um romantismo francês verdadeiro e tardio, em oposição a outro, cronologicamente ajustado, porém falso, é de Octavio Paz em Os Filhos do Barro. Focalizando a unidade negativa da revolução romântica, distingue o romantismo oficial do verdadeiro romantismo francês. [2] O oficial, composto por uma série de obras eloqüentes, sentimentais e discursivas, que ilustram os nomes de Musset e Lamartine. O verdadeiro, por um número muito reduzido de obras e de autores: Nerval, Nodier, o Hugo do período final e os chamados ‘pequenos românticos’. O simbolismo da segunda metade do século XIX seria herdeiro e metáfora do verdadeiro romantismo francês.
Um quarto de século antes de Os Filhos do Barro, Albert Béguin, em seu livro sobre romantismo e sonhos, tratando da tradição do romantismo interior, afirmava que,
[…] sendo possível encontrar seus primeiros balbucios nos ocultistas do século XVIII, em Saint-Martin e Restif de la Bretone, só chegará a sua plena expansão nas iluminações de Nerval lutando contra a demência e a morte, de Hugo idoso debruçado sobre o abismo, de Baudelaire perseguindo a possessão da Eternidade, de Rimbaud adolescente invadido pela visão, e finalmente dos surrealistas em busca de um método poético. [3]
Richer, intérprete de Nerval à luz do esoterismo, também o destaca como precursor: ele se situa histórica e psicologicamente entre Hugo e Baudelaire; mas A geração que segue Nerval se banha na atmosfera que ele criou. [4]
Representante do romantismo interior examinado por Béguin, do subjetivismo herdeiro dos românticos alemães, Nerval também representou a continuidade romântica entre arte e vida. Ninguém confundiu a tal ponto a esfera simbólica e aquela dos acontecimentos biográficos. Foi um personagem de si mesmo. Sua biografia traz um fascínio adicional à leitura da obra: inclui a agitação boêmia em companhia de outros românticos, como Gautier, Borel e Houssaye; as viagens, algumas delas parecendo de um beatnik precursor; a paixão pela atriz Jenny Colon, a quem conheceu em 1836, e que morreria em 1843 (o que não o impediu de ter outras relações com mulheres); a dilapidação de praxe de uma herança (para patrocinar uma revista teatral através da qual cultuava sua amada); as crises, surtos e internações a partir de 1841 (ou antes, conforme sugerido nas notícias biográficas das Oeuvres Complètes), culminando com o suicídio em 1855 – crises e surtos que não o impediram de escrever o equivalente a duas mil páginas (em formato Pléiade) de 1850 até sua morte.
Conseqüentemente, foi e pôde ser, de pleno direito, auto-referente, a pronunciar-se na primeira pessoa de diferentes modos: nos relatos e crônicas de viagens reais, nos quais, no entanto, introduziu bastante ficção, especialmente em Voyage en Orient; em ficções, a exemplo de Pandora e das narrativas de Les filles du feu, apresentados na primeira pessoa, além de incorporarem acontecimentos reais. De modo recíproco, projetou-se em personagens, como na história de Raoul Spifâme, o louco que acreditava ser outro, em Le Roi de Bicêtre de Les Illuminés. Segundo Max Milner (no prefácio da edição da Livre de Poche de Les Illuminés), no início do extenso trecho sobre Restif de la Bretonne em Les Illuminés é relatado o encontro do autor de Noites Parisienses com uma atriz; na verdade, seria o encontro do próprio Nerval com Jenny Colon. E, finalmente, Nerval foi personagem de si mesmo em Aurélia. Por isso, o comentário de Steinmetz sobre Petits châteaux de Bohême vale para o conjunto da sua obra: somos constantemente convidados a passar de um regime de leitura a um outro, do domínio fictício ao domínio vivido: de toda evidência, através de referências dadas e como que impostas, uma outra realidade tende a vir à luz. [5]
Fazem parte de uma cultura romântica, igualmente, as ligações de Nerval com o esoterismo. Como relatou na abertura de Les Illuminés e comentou em Aurélia, com a mãe morta quando acabara de completar dois anos de idade e o pai, médico militar, em campanha, foi criado por um tio-avô, colecionador de livros de cabala, alquimia e magia. Teria aprendido a ler através dessas obras. Faz parte da continuidade nervaliana entre arte e vida o protagonista de seus relatos ficcionais, a exemplo de Angélique, ser um pesquisador em acervos dos quais a biblioteca do seu tio-avô foi o modelo.
Nerval prosseguiria e ampliaria essa pesquisa ao longo de toda a sua vida, orientado por um propósito místico resumido neste comentário de Richer: A obra de Nerval é, pois, um perpétuo esforço de reintegração. [6] Pode-se, por isso, conferir-lhe a condição, não só de interessado e fascinado por doutrinas esotéricas, mas de conhecedor. Assistemático, embaralhava fontes, ou deixava de citá-las, mas, sem dúvida, sabia claramente do que falava, como se vê por esta caracterização do martinismo em Les Iluminnés, como doutrina que renovava simplesmente a instituição dos ritos cabalísticos do século XI, último eco da fórmula dos gnósticos, onde algo da metafísica judaica se mistura às teorias obscuras dos filósofos alexandrinos. [7]
No volume de informação esotérica absorvido por Nerval, sobressai a ligação com o martinismo, a doutrina de Martines de Pasqually, líder dos eleitos Cohen, como mostra Richer:
Nerval sofreu a influência do gnosticismo através de Martines de Pasqually. Ele [Nerval] nos parece em alguns momentos maniqueísta, gnóstico, cainita, adepto da Mãe. […] imitando os antigos dualistas, Gérard invoca como autoridades os escritos de Adão, de Set e de Enoch. […] Conformando-se a esse ensinamento, Nerval queria fazer de Jeová um Deus ciumento e mau, e da raça de Caim, à qual acreditava pertencer, uma raça eleita. [8]
Se, para Richer, Nerval parece gnóstico em alguns momentos, para Steinmetz, nas notas das Oeuvres Complètes, foi um quase gnóstico:
Nerval, quando do seu delírio de 1841, edificou – pelo que seus textos e suas cartas nos permitem perceber –, sob a invasão das imagens de seu inconsciente, um mundo quase gnóstico paralelo ao nosso. Seu sincretismo daquele tempo não correspondia – embora pudesse parecê-lo – a um princípio de confusão, mas tendia a construir um sistema intuitivamente justificativo das anomalias da sua vida, das dores que o haviam dilacerado, dos erros que ele havia perpetuado. [9]
Tomando o sincretismo como atributo fundamental do gnosticismo, bem como do romantismo, então Nerval foi hiper-gnóstico e hiper-romântico. Isso foi observado, entre outros, por Jean Guillaume em uma das notas das Oeuvres Complètes:
Se a palavra “romantismo” tem um sentido, ela designa a busca da unidade perdida desde a instauração da ciência moderna, e sempre frágil, sempre ameaçada, quando é reencontrada. […] Aquilo que é chamado de sincretismo de Nerval é, na verdade, o profundo romantismo, o qual o delírio lhe permite alcançar. O homem razoável aceita a distinção, a divisão, por via de conseqüência a mutilação; ele diz: o sonho ou a vida. Nerval: o sonho e a vida. Ele [o ‘homem razoável’] diz Vênus ou Isis ou a Virgem; Nerval as confunde. [10]
Além de sincrético, Nerval foi de um ecletismo comentado por Richer: sabe-se que ele pretendia ter dezessete religiões e mostrava respeito por todas elas. Também para o tradutor brasileiro de Aurélia, Contador Borges, Livre pensador no sentido mais pleno do termo, Nerval não era ortodoxo nem de uma religião, nem de uma heresia. [11] E o tradutor brasileiro de As Quimeras, Alexei Bueno, se refere a seu templo órfico-céltico-egípcio-pitagórico-cabalístico-cristão, [12] e sua antiortodoxia com relação a qualquer sistema e à pan-religiosidade dessa série de poemas.
A pan-religiosidade o levou, especialmente em Voyage em Orient, sua narrativa de viagem mais complexa, a fazer estudos comparativos de símbolos, mitos e religiões, procurando demonstrar sua universalidade. Um exemplo é a nota de rodapé do relato da lenda de Suleiman (Salomão), Adoniran e a rainha de Sabá, ao observar que Salomão acabou sendo destruído por um inseto minúsculo:
Será observada a relação que se encontra entre o ácaro triunfante sobre as combinações ambiciosas de Salomão e a lenda de Edda, que se relaciona a Balder. Odin e Freya haviam igualmente conjurado todos os seres, afim de que respeitassem a vida de Balder, seu filho. Esqueceram o visgo do carvalho, e essa humilde planta foi a causa da morte do filho dos deuses. É por isso que o visgo era sagrado na religião druídica, posterior àquela dos escandinavos. [13]
Todo o Voyage em Orient é assim: no Egito do século XIX, viu Alexandria dos hermetistas e o Egito dos faraós; das lendas árabes e do Alcorão, foi às fontes bíblicas, e daí seguiu aos apócrifos. Uma lenda leva a outra, um mito é todos os mitos, um símbolo remete a outro símbolo, sempre anterior: por isso, na lógica dos hermetistas, mais verdadeiro por estar mais próximo da origem.
* * *
Uma característica importante de Nerval é sua duplicidade, comentada por estudiosos. Em Aurélia e As Quimeras, foi esoterista a sério. Em outros escritos, tratou das disciplinas herméticas e suas ramificações à distância, ironicamente, como um cronista e não como adepto. No prefácio de Les Illuminés, sobre a biblioteca de seu tio-avô, comentou que, bem jovem, absorvi muito dessa alimentação indigesta ou insalubre para a alma; e mesmo mais tarde, meu julgamento teve que se defender contra essas impressões primitivas. [14] Também em Angélique, primeira narrativa de Les filles du Feu, os encontros de iluminados que preparavam silenciosamente o futuro no castelo de Ermenonville –Saint-Germain, Mesmer, Cagliostro, e mais tarde Sénancour, o “filósofo desconhecido” Saint-Martin, Dupont de Nempours, Cazotte – resultariam de idéias bizarras; as aparições que os visitavam foram tratadas como infantilidade. [15] E sua primeira coletânea de contos fantásticos, que incluiu o simbolicamente tão rico A Mão Encantada, foi intitulada Contes et facécies – facécias, brincadeiras.
Portanto, parecia oscilar entre a fé e o ceticismo, adesão e crítica. Poeta desesperado e, em momentos importantes, delirante, e autor de relatos históricos e crônicas de viagem como jornalista, além de autor ou co-autor de peças teatrais que visavam ao entretenimento, como Piquillo, é como se houvesse dois Nerval – ou o mesmo, porém movido por estados de espírito e inclinações distintas. Daí Richer mencionar suas múltiplas máscaras, umas sorridentes, outras inquietantes, [16] e observar que nele coexistiram um precursor do surrealismo e outro de Anatole France. Jean Guilllaume, outro estudioso importante de Nerval, também publicou um ensaio sobre suas múltiplas máscaras.
É claro que a duplicidade de Nerval se relaciona com ele viver do que escrevia, não só como autor de livros, mas como jornalista e dramaturgo, produzindo uma dualidade de escritas, para o mercado e para os iniciados.
Mas há outras interpretações possíveis dessa duplicidade. Uma delas, não como negação do esoterismo, mas como insatisfação, desejo de superação: Nerval se perfilava entre aqueles a quem não bastavam as certezas e as consolações da religião esotérica, comenta Richer. [17] Ver idéias bizarras e infantilidade em ocultistas seria querer ir além; e seus motivos se assemelhariam aos que levaram Blake a satirizar Swedenborg.
Sua ambivalência também pode corresponder à oscilação entre os dois pólos do romantismo, analogia e ironia, comentados por Octavio Paz em Os Filhos do Barro. Pólos opostos, porém complementares, ambas, ironia e analogia, atacam a relação de significação, a idéia de que a cada termo ou enunciado corresponde um referente. O pensamento analógico supõe que uma coisa sempre pode ser outra. A ironia, por sua vez, mostra o sem-sentido do que aparenta ter sentido.
Dualidade é o que se observa também, não só entre obras, mas internamente, no modo como são estruturadas. Em narrativas de viagens, como Voyage à l’Orient e Lorely, alternam-se os relatos de acontecimentos reais, de como eram os lugares visitados, com textos puramente ficcionais, de aventuras inventadas, além de transcrições e adaptações de lendas e fábulas. Essa alternância confundiu leitores, chegando a gerar lendas como a do seu casamento egípcio. Descrições de lugares onde nunca havia estado justificam, na Oeuvre Complète, a publicação de dois mapas, um deles com os trajetos fisicamente reais, outro com aqueles da narrativa.
Estudiosos se referem a seu desdobramento ou duplicação, a uma consciência da alteridade nessas narrativas de viagem. [18] A estruturação binária, em planos que se confundem, é mais ainda complexa em narrativas ficcionais. Para Jacques Bony, nas notas sobre Sylvie da Oeuvre Complète, pode-se facilmente concluir que a novela, que repousa sobre duas intrigas e sobre a oposição de duas heroínas, tem uma estrutura binária fortemente marcada.
Sylvie, que integra Les filles du Feu, é tida como obra-prima de Nerval; de modo superlativo, como um dos maiores livros já escritos por Umberto Eco, [19] em acréscimo aos elogios de Proust a essa novela em Contre Sainte-Beuve. Nela, dois tempos se alternam, o presente do narrador e seu passado, e dois espaços que também são planos de realidade, de Paris e da província, por sua vez associados a três personagens femininas: Sylvie, a quem o protagonista quer reencontrar; Adrienne, rememorada; e Aurélia, a musa perdida. Mas essas alternâncias de espaço e tempo, ao se sucederem, também se multiplicam, pois o tempo de um capítulo recorda o tempo de outro, e esse de outro, e assim por diante. Resulta, como o demonstrou Eco, em uma narrativa impossível, mesmo com a forma do relato realista. São impossibilidades temporais, e também, em outros de seus textos, espaciais: roteiros implausíveis de idas e vindas entre diferentes localidades, como em Angélique.
Relações de reflexão ou em eco, no interior da obra ou na relação entre várias obras, fazem que uma, sendo autônoma, também seja um comentário de outra. Em Angélique, primeira das narrativas de Les Filles du Feu, publicado em 1854, entrecruzam-se dois enredos: um deles na primeira pessoa, de um pesquisador que busca reconstituir a história do Abade de Bucquoy e descobre aquela de Angélique de Longeval; outro, a história reconstituída da própria Angélique. Mas a busca de informação sobre o Abade de Bucquoy já havia sido o tema de Les faux Saulniers, de 1850 (saulniers são trabalhadores em salinas); e os resultados da pesquisa acabariam dando em Histoire de l’Abbé de Bucquoy, de 1852, que integra Les Illuminés; de quebra, relatos de viagem em Les faux Saulniers seriam recortados e publicados em La Bohême Galante, também em 1852.
Há muito mais dessas manifestações de desprezo pela unidade da obra em Nerval, tornando-o mestre da interpolação, de encadeamentos narrativos que justificam ele apontar Lawrence Sterne, o autor de Tristan Shandy, como uma de suas leituras.
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