«Queimai o Dinheiro»
Depois do estrondoso sucesso da «origem do mundo», as massas não resistiram ao apelo e rumaram aos jardins da livraria Centésima Página para queimar o dinheiro. Contudo, creio que caminharam em sentido contrário para a praceta onde se encontrava a equipa da SIC!
«Quem quer pouco, tem tudo, quem quer nada é livre;
quem não tem, e não deseja Homem, é igual aos deuses»
Ricardo Reis
Obrigada a todos pela vossa presença para a apresentação deste livro que, num momento em que a crise é uma palavra modal, desafia e contraria a lógica (pre)dominante! Indago como seria se este livro fizesse a apologia do açambarcai e reproduzi o dinheiro ou se se tratasse de um livro de auto-terapia sobre como não sucumbir ao endividamento e às hipotecas!
Já em 2005, o Pedro Ribeiro vaticinava que «o futuro já não é o que era/o futuro é agora»; «o país a arder/e eu também/o país a chorar/e eu a enlouquecer». Passados 4 anos, o país arde e chora penosamente, restando saber se a loucura do autor estabilizou ou regrediu!
Por defeito de formação, gosto de situar as minhas leituras segundo duas coordenadas: o tempo e o espaço. Neste caso, acresce uma terceira coordenada na medida em que o Pedro e eu perfilhamos da mesma formação em Sociologia, com o peso, por vezes, asfixiante da tradição francófona na qual o Bourdieu pontua como principal guru. Numa das lições inaugurais, Bourdieu (1996) advogava o papel do sociólogo como porta-voz, um messias, dos oprimidos e silenciados pela violência simbólica. Também neste livro, o Pedro advoga a sua boa nova, na esteira de uma poesia messiânica:
Não vim ao mundo para trabalhar
vim ao mundo para espalhar a Boa Nova
não de Deus nem de Jesus
mas do Homem
do Super-homem
dionisíaco
xamãnico
sem preconceitos
sem dinheiro
criador
O homem que não é lucro
que não é mercador
o novo homem
não-violento
não-predador
o homem novo
o Amor.
Na minha opinião, dificilmente o poeta pode aspirar ao estádio de profecias. A poesia não é praxis, quanto muito é um estádio de inconformismo permanente dado o sonambulismo real, e aspira a despertar consciências adormecidas, na senda da poesia militante tal como refere Vinicius de Moraes n'«O Haver»:
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.
A propósito deste livro é curioso o paralelismo constante entre o amor e o dinheiro, que Marx denominava de «prostituta universal», e como o seu apelo pode ser encarado como uma espécie de despojamento, em sentido lato, da acepção restrita de Homo economicus. A este propósito, Morin (2007) esboçou uma antropologia da barbárie humana, tentando demonstrar que as noções de Homo sapiens, Homo faber e Homo economicus eram por si mesmas insuficientes: o Homo sapiens, dotado de espírito racional, pode ser ao mesmo tempo Homo demens, capaz de delírio, de demência. O Homo faber, que sabe fabricar e usar utensílios, é também capaz de produzir inúmeros mitos. Por sua vez, o Homo economicus, que se determina em função do seu próprio interesse, é também o Homo ludens, o homem do jogo, da despesa, do desperdício.
O Pedro Ribeiro prossegue a sua cruzada proferindo:
Acordai!
Sou o novo rei deste reino
Estoirai foguetes
Pilhai os bancos
Queimai o dinheiro!
Contudo, «não bateis palmas! Não quero palmas! Só quero a Humanidade!». O autor socorre-se das aporias povo versus trabalho e, aqui, é questionável a sua noção de Humanidade:
Porque raio terei eu de defender o povo quando o povo é imbecil e ignorante por culpa própria? O povo não tem consciência que anda a ser comido pela sociedade-espectáculo, pela especulação financeira, pelos media. Se não queres ler, o problema é teu! Não sabes o que perdes! Tenho pena dos que não sabem ler nem escrever, dos outros não. É tempo de acabar com a glorificação do povo, do povo trabalhador. Essas velhas bandeiras da esquerda e até de alguns libertários são obsoletas. O povo não merece ser glorificado. O povo rejeita o filósofo e o poeta, sobretudo quando eles aparecem com as vestes da pobreza. Ah, Nietzsche! Ah, Zaratustra! Como és sublime! Afasta-te do rebanho! Afasta-te da multidão! Eles não te merecem. Fala apenas com os poucos que te ouvem. Não trabalhes! Não te sujeites a chefes, a regras repressivas, ao Estado! Cria!
Já não estamos no contexto da revolução industrial mas sim da revolução digital e do que apelido de «geração refrigerante», que cultiva a descartabilidade e o imediatismo ancorados nas Novas Tecnologias - a fast thinking society. Curiosamente, sob o advento da sociedade em rede e dos baluartes da informação e do conhecimento, os integrados preconizam o regresso à economia simbólica e à troca directa. Temos à nossa disposição um manancial de aplicações e ferramentas online que nos proporcionam a integração em comunidades de interesses, de objectivos e a partilha de recursos. Uma das vias possíveis de fundamentar a coesão da comunidade assenta nessa partilha e a minha valorização como membro passa pelo valor dos recursos comungados. Contudo, a questão de partida impera: este individualismo em rede que fomenta os capitais relacional e cultural redunda, em última instância, no capital económico. A posse de um computador, de uma ligação à Internet, o mínimo de conhecimentos informáticos e da língua-mãe (Inglês) traduzem-se num quantitativo monetário.
Daí que, o autor prossiga nesse campo de simbolismos e metáforas:
O dinheiro é a causa de todos os males. O dinheiro é o único deus todo-poderoso que comanda as relações entre homens, entre instituições, entre países. O outro deus está morto. É da posse do dinheiro que nasce a intriga, a hipocrisia, o ódio, a competição, a desigualdade, a guerra, a filha da putice, a pulhice, a aldrabice. Enquanto existir dinheiro haverá sofrimento. O dinheiro pertence à morte, aos profetas da morte, aos mercadores. O dinheiro é a negação da vida, da liberdade e da humanidade. O dinheiro converte tudo em mercadoria. Tudo se vende, tudo se compra, nós próprios estamos à venda no mercado. O mundo é um gigantesco mercado. O capitalismo globalizado traz consigo a coroação do deus supremo a quem todos obedecem. Em nome da humanidade, em nome da liberdade, em nome do amor, acabemos com o dinheiro. Organizemos festins e motins. Queimemos o dinheiro! Queimemos o dinheiro na praça!
Confesso que nunca esperei por Godot e não vim aqui para profetizar ideologias ou propor alternativas! Mas reitero que, à luz do comunismo, o desaparecimento do dinheiro não significa o fim de todas as estimativas de custos. As sociedades e as acções humanas presentes, passadas e por vir são obrigatoriamente confrontadas com esse problema quer utilizem, ou não, símbolos monetários.
Professo, porém, do livre arbítrio que assiste a cada indivíduo, não obstante o peso das condicionantes sociais, e do campo de possíveis num mundo estatizado, mercantilizado e globalizado. O Pedro Ribeiro aponta precisamente uma das vias quando refere que:
Quero entregar a minha alma ao governo
deixar-me colectar em êxtase
amar-te ordeiramente
como um cidadão cumpridor
quero lançar uma OPA
em directo no Telejornal
imolar-me no mercado global.
Uma ideia tanto mais exequível pois, aqui ao lado, está uma equipa da SIC e o prime time televisivo noticia (quase) sempre o cidadão empreendedor e arrojado. Obrigada!
Referências:
Biblioteca Comunista. Um mundo sem dinheiro: O Comunismo. http://www.velhatoupeira.hbe.com.br/
Bourdieu, P. (1996). Lição sobre a lição. Vila Nova de Gaia: Estratégias Criativas.
Morin, E. (2007). Cultura e barbárie europeias. Lisboa: Instituto Piaget.
Publicada por Sílvia S. Sílvia em 15:12 0 comentários
Saturday, May 30, 2009
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1 comment:
muito bom.
csd
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