Sunday, April 05, 2009

ZONA AUTÓNOMA PROVISÓRIA

Zona Autónoma Provisória

AUTOR
Hakim Bey


TÍTULO ORIGINAL
Temporary Autonomous Zone


Anti-©1999
Discordia! Edições
Apartado 2354, 4700 Braga
discordia@mail.pt

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“… porém, desta vez, venho como o vitorioso Dioniso, que transformará o mundo num feriado permanente… não que eu tenha muito tempo…”

- Nietzche (na sua última carta “louca” a Cosima Wagner)

UTOPIAS PIRATAS

Os vagabundos do mar e corsários do século XVIII criaram uma “rede de informação” que percorria o planeta: ainda que primitiva e originariamente dedicada a negócios sujos, a rede funcionava admiravelmente. Espalhadas pelo globo estavam ilhas, esconderijos remotos onde os navios se podiam abastecer de água e outras provisões, onde os espólios de ataques se podiam trocar tanto por artigos de luxo como por bens de primeira necessidade. Algumas destas ilhas sustentavam “comunidades intencionais”, mini-sociedades que viviam resoluta e conscientemente fora do amplexo da lei, mesmo que a sua vida alegre fosse curta.
Há algum tempo atrás andei a pesquisar material acessório sobre pirataria, esperando encontrar algum estudo sério sobre estes enclaves — aparentemente nenhum historiador achou este tópico digno de análise (William Burroughs já o mencionou, bem como o falecido anarquista Inglês Larry Law, mas nunca se conduziu nenhum estudo sistemático). Voltei às fontes iniciais e desenvolvi a minha própria teoria, sobre a qual discutirei alguns aspectos neste ensaio. Chamei a estas sociedades “Utopias Piratas”.
Recentemente, Bruce Sterling, um dos expoentes da ficção científica CyberPunk, publicou um romance localizado num futuro próximo que se baseia na seguinte premissa: a decadência dos sistemas políticos levar-nos-á a uma proliferação descentralizada de experiências sociais: gigantescas corporações geridas pelos seus trabalhadores, enclaves independentes dedicados à “pirataria de dados”, enclaves eco-social-democratas, enclaves onde o trabalho foi abolido , zonas anarquistas livres, etc. A economia de informação que sustenta esta diversidade é a Rede; os enclaves (tal como o título do livro) são Ilhas na Rede.
Os Assassinos medievais fundaram um “Estado” que consistia numa rede de vales remotos e castelos, todos separados por milhares de quilómetros. Estrategicamente invulnerável a qualquer invasão, cujas ligações se efectuavam pelo fluxo de informação proveniente de agentes secretos, estava guerra com todos os governos e era dedicado apenas ao conhecimento. A tecnologia moderna, culminando no satélite-espião, transforma este género de autonomia num sonho romântico. Não haver mais ilhas piratas! No futuro, esta mesma tecnologia, liberta de todo o controlo político, poderia tornar possível todo um mundo de zonas autónomas. Por enquanto este conceito não é mais que ficção científica — especulação pura.
Estaremos nós, que vivemos no presente, condenados a nunca experimentar a autonomia, nunca passear numa terra governada apenas pela liberdade, nem que seja por momentos? Estaremos limitados apenas a nostalgias do passado ou do futuro? Teremos que esperar até que o mundo inteiro se liberte do controlo político para que (nem que seja) um de nós possa afirmar um conhecimento da liberdade? A lógica e a emoção unem-se para condenar tais suposições. A razão postula que ninguém pode lutar por aquilo que não conhece; e o coração revolta-se ao imaginar um universo tão cruel que permita perpetrar tais injustiças na nossa geração humana. Dizer “Não serei livre até que todos os seres humanos (ou criaturas com entendimento) o sejam” não é mais que ceder a um torpor abençoado, abdicar da nossa humanidade, definirmo-nos como derrotados.
Creio que, ao efectuarmos extrapolações a partir de histórias passadas e futuras sobre “ilhas na Rede”, podemos colher provas de que um certo tipo de “enclave livre” não só é possível na nossa época como também existe. Todas as minhas pesquisas e especulações se cristalizam no conceito da ZONA AUTÓNOMA PROVISÓRIA (a partir daqui referida pela sigla ZAP).
Apesar da síntese que faz do meu pensamento, não pretendo que a ZAP seja tomada por mais do que um ensaio (“tentativa”), uma sugestão, quase um delírio poético. Apesar do entusiasmo por vezes exorbitante da minha linguagem, não tento construir um dogma político. De facto, evito deliberadamente definir a ZAP — contorno o assunto, disparando feixes de luz exploratória. Por fim, a ZAP explica-se a si própria. Se a expressão se tornasse algo corrente seria compreendida sem dificuldade… compreendida em acção.


AGUARDANDO A REVOLUÇÃO


Como é que o “mundo às avessas” consegue sempre endireitar-se? Porque é que a reacção segue sempre a revolução, como temporadas no inferno?
Um Levantamento, ou a forma mais próxima do Latim, Insurreição, são palavras usadas pelos historiadores para rotular revoluções falhadas — movimentos que não coincidem com a curva esperada, a consensual revolução, reacção, traição, a criação de um Estado mais forte e ainda mais opressivo — é o girar da roda, uma e outra vez, ao seu ponto mais alto: a bota militar esmagando a face humana para sempre.
Ao estabelecer uma recusa da curva, o Levantamento sugere a possibilidade de um movimento exterior à espiral Hegeliana desse “progresso” que subrepticiamente não é senão um ciclo fechado. Surgo — subir, erguer. Insurgo — levantar-se a si mesmo. Uma prova de força. Um adeus a essa paródia infeliz da roda Kármica, futilidade revolucionária exibida pela História. A palavra de ordem “Revolução!”, de toque de alarme, converteu-se em toxina, uma armadilha maligna e pseudo-Gnóstica do destino, um pesadelo em que não importa quanto lutemos, porque nunca escaparemos a essa Era malévola, esse íncubo, o Estado, um a seguir ao outro, todos os “céus” governados por mais um anjo maléfico.
Se a História é “Tempo”, como se pretende, então o levantamento é um momento que transcende o tempo e viola as leis da História. Se o Estado é História, como reclama, então a insurreição é o momento proibido, uma negação imperdoável da dialéctica — trepando pelo poste acima para sair do buraco fumarento, uma manobra xamânica executada num ângulo que parece “contradizer” o Universo. A História diz que a Revolução atinge “permanência”, ou pelo menos duração, enquanto que o levantamento é temporário. Desta forma, um levantamento é algo que atinge um auge, um extremo em comparação com os padrões habituais da consciência/experiência. Tal como os Festivais, os levantamentos não são uma coisa de todos os dias – de outro modo, não transcenderiam a normalidade. Contudo, tais momentos de intensidade dão forma e significado a toda uma vida. O xamã regressa, porque não se pode ficar empoleirado no telhado para sempre, mas entretanto as coisas mudaram, houve deslocações e integração, ocorreu a diferença.
Podem bem dizer que isto é a sabedoria do desespero. Então e o sonho anarquista, o Não-Estado, a Comuna, a Zona Autónoma com duração, uma sociedade livre, uma cultura livre? Teremos que abandonar essa esperança a troco de algum acte gratuit existencialista? Não interessa mudar a consciência, interessa mudar o mundo.
Aceito esta crítica, é justa. Tenho contudo duas coisas a acrescentar; em primeiro lugar, a revolução ainda não chegou a lado nenhum no que toca à consecução destes sonhos. A visão ganha vida na altura do levantamento — mas assim que triunfa a “Revolução” e regressa o Estado, o sonho e o ideal já foram traídos. Não abdiquei da esperança nem deixei de esperar que ocorram mudanças — mas desconfio da palavra revolução. Em segundo lugar, mesmo que proponhamos em vez da atitude revolucionária uma ideia de insurreição que floresce espontaneamente como cultura anarquista, a nossa situação histórica não é propícia a tão vasta empresa. Nada, a não ser um martírio fútil, adviria de uma colisão frontal com o Estado em fase terminal, o Estado macrocapitalista ultra-informado, o império do espectáculo e do simulacro. Ele tem as armas apontadas para nós, ao passo que as nossas pistolinhas não encontram outro alvo que não uma histeria, uma vacuidade rígida, um espectro capaz de sufocar qualquer faísca num ectoplasma informativo, uma sociedade rendida, governada pela imagem do polícia e o olho absorvente do ecrã televisivo.
Resumindo, não apresentamos a ZAP como fim em si própria, substituta de todas as outras formas de organização, tácticas, objectivos. Recomendamo-la porque pode providenciar as qualidades enriquecedoras que encontramos no levantamento sem necessariamente levar à violência e ao martírio. A ZAP é como um levantamento que não entra em confronto directo com o Estado, uma operação guerrilheira que liberta uma área (física, temporal, imaginária) e em seguida dissolve-se para se materializar noutra altura, noutro lugar, antes que o Estado possa esmagá-la. Como o Estado está mais preocupado com simulacros do que com verdadeira substância, a ZAP pode “ocupar” estas áreas clandestinamente e prosseguir nos seus propósitos festivos durante algum tempo em paz relativa. Talvez algumas ZAPs pequeninas tenham durado vidas inteiras por ninguém reparar nelas, como enclaves de saloios – porque nunca houve interacção com o Espectáculo, nunca emergiram dessa vida real que os agentes da Simulação não conseguem ver.
A Babilónia toma essas abstracções por realidades; é precisamente dentro desta margem de erro que a ZAP pode existir. Dar à luz uma ZAP pode exigir tácticas de violência e de defesa, mas a sua maior força está na sua invisibilidade — o Estado não pode reconhecê-la porque a História nunca a definiu. Assim que a ZAP for categorizada (representada, mediada) deve desaparecer, e desaparecerá, deixando para trás uma casca vazia, para aparecer noutro lado qualquer, invisível uma vez mais, porque o Espectáculo não sabe defini-la com os seus termos limitados. A Zap é assim uma estratégia perfeita para uma era em que o Estado é omnipresente e todo-poderoso e ao mesmo tempo cheio de falhas e zonas obscuras.
Como a ZAP é um microcosmos desse “sonho anarquista” que é uma cultura livre, não posso imaginar melhor táctica para começarmos a perseguir esse sonho enquanto nos fazemos experimentar alguns dos seus benefícios aqui e agora.
Em suma, o realismo exige que desistamos não só de esperar pela “Revolução” como também que deixemos de a querer. O “Levantamento”, sim — sempre que possível e mesmo que haja violência. Os “espasmos” do Estado serão “Espectaculares”, mas na maioria dos casos a melhor política, a mais radical, será a recusa de participar na violência espectacular, efectuando uma retirada da área do Espectáculo, do simulacro, desaparecer.
A ZAP é um acampamento de guerrilheiros ontológicos: atacam e fogem. A tribo toda anda sempre em corropio, mesmo que a tribo seja composta de dados informáticos na rede. A ZAP deve ser capaz de se defender; só que tanto o “ataque” como a “defesa” devem, se possível, evitar a imitação da violência do Estado, que não tem significado nenhum. O ataque desencadeia-se sobre as estruturas do controlo, essencialmente sobre ideias; a defesa é a invisibilidade, que é uma arte marcial, e a “invulnerabilidade”, uma “arte oculta” entre as artes marciais. A Máquina de Guerra Nómada conquista sem que ninguém perceba e deixa o local antes de se ajustar o mapa à nova realidade. Quanto ao futuro — só os autónomos podem planear a autonomia, organizá-la, criá-la. É uma prova de força. O primeiro passo tem semelhanças com o satori — a percepção de que a ZAP começa com um simples acto de consciência.



A PSICOTOPOLOGIA DA VIDA QUOTIDIANA


O conceito da ZAP surge em primeiro lugar duma crítica da Revolução e dum apreço pela Insurreição. A primeira afirma que a última é um falhanço; porém, achamos que o Levantamento é uma possibilidade bem mais interessante, partindo do padrão de uma psicologia da libertação, do que todas as revoluções “bem sucedidas” da burguesia, dos comunistas, dos fascistas, etc.
A Segunda força generativa que sustenta a ZAP desenvolve-se a partir desse acontecimento histórico a que chamo “o fecho do mapa”. O último pedaço de terra não reclamado por qualquer Estado-Nação foi comido em 1899. O nosso é o primeiro século sem terra incognita, sem uma fronteira. A Nacionalidade é o mais alto princípio no governo do mundo — não há um penedo nos mares do Sul que ainda esteja aberto, não há um vale remoto, nem mesmo a lua ou os planetas estão livres. Esta é a apoteose dos gangsters do território. Não há um metro quadrado da Terra sem polícias ou impostos... em teoria.
O “mapa” é uma grelha politica abstracta, uma vigarice gigantesca mantida pelo condicionamento do cavalo que segue a cenoura (condicionamento criado pelo Estado, que é um perito); até que o mapa se converta em território para a maioria das pessoas — acaba-se a “Ilha das Tartarugas”, que passa a ser “Estados Unidos”. Ainda assim, como o mapa é uma abstracção, não pode cobrir a terra com a precisão de 1:1. Nas complexidades fractais da verdadeira geografia o mapa só vislumbra grelhas dimensionais. Escondidas, imensidades inexploradas escapam às sondas. O mapa não é exacto porque o mapa não pode ser exacto.
Assim, fica fechada a porta à Revolução, mas não à insurgência. Por enquanto, concentrar-nos-emos em emergências súbitas de energia, procurando não nos emaranhar nas malhas das soluções permanentes.
E o próprio mapa está fechado, mas a zona autónoma está em aberto. Metaforicamente, desdobra-se nas dimensões fractais que a Cartografia do Domínio não vê. Aqui devemos introduzir o conceito de psicotopologia ( e -topografia) como uma ciência alternativa a essa que o Estado tem ao reconhecer o terreno e fazer mapas, perpetuando um “imperialismo psíquico”.
Só a piscotopografia pode desenhar mapas da realidade à escala 1:1, porque só a mente humana fornece complexidade suficiente para moldar o real. Mas um mapa nessa escala não pode “controlar” o seu território porque é virtualmente idêntico ao seu território. Apenas pode ser utilizado para sugerir, num certo sentido, apontar para certas características. Estamos à procura de “espaços” (geográficos, culturais, sociais, imaginários) com potencial bastante para florescerem como zonas autónomas — e procuramos tempos em que estes espaços estejam relativamente abertos, quer por negligência do Estado quer por terem escapado à atenção dos cartógrafos; não importa realmente a razão. A Psicotopologia é a arte de procurar uma ZAP em potencial, como a arte do vedor (adivinho que pressente a água com um ramo de árvore bifurcado).
Os fim da Revolução e do mapa não é mais que a fonte negativa da ZAP; ainda resta muito para ser dito sobre as inspirações positivas. A reacção só por si não consegue fornecer a energia necessária para “manifestar” uma ZAP. Um Levantamento tem que servir para qualquer coisa.
1. Em primeiro lugar, podemos falar de uma antropologia natural da ZAP. A família é a
unidade-base da sociedade consensual, mas não da ZAP (“Famílias! Como as detesto! Açambarcadoras do amor!” — Gide). A família nuclear, com as suas “neuras edipianas” inerentes, parece ter sido inventada no Neolítico, como uma resposta à “revolução agrícola” com a sua escassez e hierarquia impostas. O modelo do Paleolítico é ao mesmo tempo mais essencial e mais radical: o bando. As sociedades típicas de caçadores/recolectores, nómadas ou semi-nómadas, são constituídas por bandos de cerca de 50 pessoas. No interior de sociedades tribais maiores a estrutura do bando é ocupada pelos clãs, ou por grupúsculos como sociedades secretas/iniciáticas, sociedades caçadoras ou guerreiras, sociedades baseadas no sexo, “repúblicas infantis”, e por aí fora. Se a família nuclear é produto da escassez (daí o açambarcamento), o bando é resultado da abundância – tendo a generosidade por resultado. A família é fechada: pela genética, pela posse masculina da mulher e das crianças, pela totalidade hierárquica da sociedade agrícola/industrial. O bando está aberto — não a toda a gente, certamente, mas a quem sinta afinidades com ele, os iniciados que juraram preservar laços de amor. O bando não é parte de uma hierarquia maior, é antes integrante de um padrão horizontal gerado por costumes, parentescos alargados, contratos e alianças, afinidades espirituais, etc. (mesmo agora, as sociedades Índias da América preservam certos aspectos desta estrutura).
Na nossa sociedade da Simulação pós-Espectacular, há forças operantes — a maioria invisíveis — tentando destruir a família para ressuscitar o bando. Abalos na estrutura do Trabalho ressoam na “estabilidade” arruinada da unidade-lar e da unidade-família. O “bando” de cada um, hoje em dia, inclui amigos, ex-esposos/as e amantes, pessoas que conhecemos em empregos e reuniões diferentes, grupos afins, redes de interesses especiais, redes de correspondência postal, etc. A família nuclear torna-se cada vez mais uma armadilha, um buraco na estrada cultural, uma implosão neurótica e secreta de átomos divididos – e a contra-estratégia mais óbvia emerge espontaneamente na redescoberta quase inconsciente da possibilidade mais arcaica e também mais pós-industrial do bando.
2. A ZAP como festival. Stephen Peral Andrews ofereceu como imagem de uma sociedade
anarquista o jantar de convívio, no qual todas as estruturas da autoridade se dissolvem na convivialidade e no festejo (ver Apêndice C). Aqui podemos também invocar Fourier com o seu conceito dos sentidos como bases do desenvolvimento social — “toque-rotina” e “gastrosofia”, e o seu elogio às implicações esquecidas do paladar e do olfacto. Os antigos conceitos de Jubileu e Saturnália têm a sua origem numa intuição de que certos acontecimentos se colocam fora do alcance do “tempo profano”, a vara de medição do Estado e da História. Estes feriados ocupavam literalmente fissuras no calendário — intervalos intercalares. Por volta da Idade Média, perto de um terço do ano era para feriados. Talvez os motins contra a alteração do calendário tivessem menos a ver com os “onze dias a menos” do que com a percepção de que a ciência imperial conspirava para fechar estas fissuras no calendário, nas quais se tinha acumulado a liberdade das pessoas — um coup d´état, uma cartografia compulsiva do ano, a captura do próprio tempo, transformando o cosmos orgânico num Universo-relógio. A morte do festival.
Os participantes na insurreição não podem deixar de notar os seus aspectos festivos, mesmo no meio do perigo, do risco, da luta armada. O Levantamento é como uma Saturnália que se libertou (ou que foi forçada a desaparecer) do seu intervalo intercalar e agora tem toda a liberdade de aparecer como e quando lhe apetecer. Liberto de tempo e lugar, ainda assim possui um faro para a maturidade dos acontecimentos, e uma afinidade com o genius loci. A ciência da psicotopologia indica o “fluir de forças” e os “locais de poder” (para nos apropriarmos de algumas metáforas ocultistas) que localizam a ZAP no espaço e no tempo, ou que pelo menos nos ajudam a definir a sua relação com o tempo e o local.
Os Media convidam-nos a “celebrar os momentos da nossa vida” com a unificação falsificada do bem de consumo e do espectáculo, o famoso Não-Acontecimento de pura representação. Como resposta a esta obscenidade temos, por um lado, o espectro da recusa (explorado pelos Situacionistas, por John Zerzan, Bob Black, etc.) – por outro lado, a emergência de uma cultura festiva retirada e até escondida daqueles que pretendem gerir o nosso lazer. “Fight for the right to party” (“Luta pelo direito a festejar”) não é realmente uma paródia das lutas radicais mas uma nova manifestação das mesmas, bem apropriada a uma era que oferece televisões e telefones como meio de “alcançar e tocar” outros seres humanos, maneiras de se estar presente...
Pearl Andrews tinha razão: o jantar de convívio é já “a semente da nova sociedade que toma forma no casulo da velha” (. A “reunião tribal” ao estilo da década de 60, o conclave florestal de eco-sabotadores, o Beltane idílico dos neo-pagãos, as conferências anarquistas, os círculos gay … festas no Harlem de 1920, casas nocturnas, banquetes, pic-nics libertários de outrora — devemo-nos dar conta de que estes espaços já são, de certa forma, zonas libertas, ou pelo menos ZAPs em potência. Quer esteja aberta a um grupo restrito de amigos, como o jantar, ou milhares de convivas, como numa Rave, a festa é sempre “aberta” porque não é “ordenada”; pode ser planificada, mas senão acontecer por acaso, é um falhanço. A espontaneidade é um elemento crucial.
A essência da festa: cara a cara, um grupo de seres humanos conjugam esforços para atingir desejos comuns, quer sejam desejos de boa comida e alegria, dança, conversas, as artes da vida, quer seja o desejo erótico, ou o desejo de criar uma obra de arte comunal, ou chegar a um extâse bem-aventurado — resumindo, uma “união de egoístas”, como disse Stirner, na sua forma mais simples — ou então, nas palavras de Kropotkine, um impulso biológico básico de ajuda mútua (aqui também devíamos mencionar a “economia do excesso” de Bataille e a sua teoria da cultura do potlatch ).
3. De importância vital para a expressão da realidade ZAP é o conceito de nomadismo
psíquico (ou como lhe chamamos por piada — “cosmopolitanismo sem raízes”). Aspectos deste fenómeno foram já discutidos por Deleuze e Guattari em Nomadology and the War Machine, por Lyotard em Driftworks e outros autores na edição sobre o tema do Oásis na publicação Semiotext(e). Usamos o termo “nomadismo psíquico” em detrimento de “nomadismo urbano”, “nomadologia”, “trabalho de dispersão (driftwork)”, etc., apenas para que possamos reunir todas estas ideais num complexo vagamente estruturado, para ser estudado à luz da aparição da ZAP.
“A Morte de Deus”, que de certo modo funcionou como uma descentralização do projecto
civilizacional Europeu, gerou uma mundividência multi-perspectivada e pós-ideológica capaz de se movimentar sem estar presa às suas raízes entre filosofia e mito tribal, entre ciências da natureza e Taoísmo — possibilitando a capacidade de ver pela primeira vez como se através dos olhos de algum insecto dourado, cada faceta mostrando um mundo inteiramente diferente.
Esta visão foi todavia conquistada por vivermos numa época em que a velocidade e o “fetichismo do bem de consumo” criaram uma unidade falsa e tirânica que tende a diluir a diversidade cultural e individual, fazendo com que um lugar “seja tão bom como outro qualquer.” Este paradoxo cria “ciganos”, viajantes psíquicos impelidos pelo desejo ou pela curiosidade, vagabundos com lealdades pouco arreigadas (e verdadeiramente desleais ao “projecto Europeu”, que perdeu já todo o charme e vitalidade), não acorrentados a nenhum tempo ou local particulares, procurando diversidade e aventura… esta descrição não cobre só a classe-X que são os artistas e intelectuais mas também os trabalhadores migrantes, os refugiados, os desalojados, os turistas, a cultura das roulottes — e ainda as pessoas que “viajam” pela Internet, que talvez nunca venham a sair dos seus quartos (ou aqueles que, como Thoreau, “viajaram muito – em Concord ”); e por fim “toda a gente” está incluída, todos nós, que vivemos num percurso por automóveis, férias, televisões, livros, filmes, telefones, mudamos de emprego, de “estilo de vida”, religiões, dietas, etc., etc.
O Nomadismo Psíquico como táctica, aquilo a que Deleuze e Guattari metaforicamente chamam “a máquina de guerra”, transforma o paradoxo passivo num paradoxo activo e talvez até “violento”. As últimas agonias e estertores de “Deus” no seu leito de morte já se fazem ouvir há tanto tempo — materializados no Capitalismo, no Fascismo e no Comunismo, por exemplo — que ainda sobra muita “destruição criativa” a empreender por parte de comandos pós-Bakuninistas e Pós-Nietzcheanos ou apaches (literalmente “inimigos”) do velho consenso. Estes nómadas praticam a razzia, são corsários, são um vírus; desejam a ZAP e precisam dela, acampamentos de tendas negras debaixo das estrelas do deserto, interzonas, oásis secretos, fortificados, ligados por caravanas em rotas ocultas, pedacinhos de selva e terra-má “libertados”, zonas de acesso não recomendado , mercados negros, bazares clandestinos.
Estes nómadas cartografam as suas rotas olhando para estrelas bizarras, que podem ser cachos luminos de informação no ciberespaço, ou alucinações, quem sabe. Abram sobre a mesa um mapa da terra; sobreponham um mapa das mudanças políticas; por cima desse, um mapa de Rede, especialmente da Contra-Rede com típico ênfase no tráfico de informação e logística clandestinas — e finalmente, cobrindo tudo, o mapa 1:1 da imaginação criativa, a estética, os valores. A grelha resultante anima-se com explosões energéticas inesperadas, coágulos de luz, túneis secretos, surpresas.

1 comment:

ruído binário said...

muito prazer.