Wednesday, April 29, 2009
SURREALISMO E MARXISMO
CLAUDIO WILLER...
Surrealismo e marxismo?
(Seguido de comentários sobre Surrealismo no Brasil)
A quantidade de títulos brasileiros sobre surrealismo pode ser contada nos dedos. Este é um dos motivos para registrar A estrela da manhã - Surrealismo e marxismo, de Michael Löwy (Editora Civilização Brasileira). Seu autor conhece o assunto, por tê-lo pesquisado e pela participação, há décadas, em atividades surrealistas. Daí a argumentação fluente, fundamentada em uma sólida bibliografia.
Pode, contudo, por causa do subtítulo, criar uma expectativa e subseqüente frustração, pois sugere a discussão da relação entre o corpus do que é entendido por marxismo, ou abrangido por esse significante (bastante coisa, é claro), e tudo aquilo designado por outro termo saturado de sentido, surrealismo.
Mas A estrela da manhã - Surrealismo e marxismo é, antes, uma coletânea de ensaios. Tem um fio condutor, o exame da natureza revolucionária do surrealismo. A estrela da manhã, do título, é sua metáfora, remetendo ao final de Arcano 17 de Breton: é a estrela especialmente luminosa emanada, segundo Éliphas Lévi, do anjo rebelde, Lúcifer, e que representa ao mesmo tempo amor e liberdade. O belíssimo final dessa obra complexa de Breton, Arcano 17 (editado pela Brasiliense), equivale às etapas finais de um processo iniciático: Breton evoca o sentido da Estrela da Manhã, Vênus, a supremacia do feminino, ao descobrir o estudo de Viatte mostrando o diálogo entre Éliphas Lévi e Victor Hugo, e como partilharam a crença nesse mito liberador.
Um dos ensaios de Löwy é sobre Walter Benjamin. Comentado o modo como surrealismo impressionou o autor de O drama barroco alemão, resultando em influência e intertexto, especialmente de O Camponês de Paris de Aragon, evidentes em Rua de Mão Única e outros de seus escritos. Examina sua apreciação lúcida e pioneira do surrealismo em 1929. Benjamin partilhou com Breton e Aragon a idéia de iluminações profanas, a admiração pelo romantismo radicalizado de Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont, a percepção do maravilhoso que emerge no mundo moderno; e mais, o que Löwy chama de marxismo gótico, a sensibilidade para a dimensão mágica das culturas do passado. Os conceitos weberianos de desencantamento e re-encantamento do mundo são bem invocados, na introdução do livro e neste ensaio, a propósito da conexão Benjamin-surrealismo.
Outro capítulo, sobre Pierre Naville, pensador político importante, um dos editores de La Révolution Surréaliste, é oportuno. Realmente, divergências filosóficas à parte, o tratamento dado por Breton a Naville em 1930, difamando-o no Segundo Manifesto do Surrealismo, não foi algo que se faça. Recuperando Naville, revela bastidores da relação surrealismo-trotskismo nos anos 30. Ao que parece, não fossem as diferenças entre ambos, Breton e Naville, a aproximação de Breton e Trotski poderia ter-se dado antes.
Em seguida, um texto sobre O romantismo noir de Guy Debord e situacionismo. Chega em boa hora, por coincidir com a publicação, no Brasil, de manifestos da Internacional Situacionista e outras obras de Debord pela Conrad Livros. Traça um perfil de Debord, ao expor as linhas gerais de seu pensamento. Mas, dentro dos propósitos de A estrela da manhã, o exame das diferenças e afinidades entre surrealismo e o autor de La Societé du spectacle não poderia ficar restrito a um breve parágrafo, em acréscimo ao que é dito nas páginas iniciais do livro, supondo afinidades eletivas a aproximarem a atitude surrealista e a deriva situacionista.
Finalizam a série dois textos interligados, que poderiam compor um só artigo: um elogio a Vincent Bounoure, e um balanço da situação de grupos e movimentos surrealistas depois da morte, em 1966, de Breton.
Vincent Bounoure, morto em 1996, participou ativamente do surrealismo desde 1955, publicando em periódicos como Surréalisme même e La brèche. Em 1969, insurgiu-se contra a dissolução do surrealismo por Jean Schuster (legatário de Breton), José Pierre e Gérard Legrand (co-autor, com Breton, de L’Art magique), entre outros integrantes de peso desse movimento. Mas teve apoio de outros surrealistas de expressão, como Jean-Louis Bédouin, a excelente poeta Joyce Mansour e Robert Lebel. Daí em diante, Bounoure editou periódicos e a coletânea La Civilisation surréaliste. Estimulou manifestações e atividades no mundo todo. Criticou sua apropriação acadêmica, universitária. Segundo Löwy, …Se a aventura surrealista ainda continua em nossos dias, e se ela prossegue no século XXI, como esperamos, isso se deve e há de se dever, em absoluto primeiro lugar, ao espírito de insubmissão de um homem: Vincent Bounure. Entre outras informações sobre a movimentação surrealista pós-bretoniana, Löwy registra sua aproximação à Quarta Internacional, trotskista, em 1976; por conseguinte, aos marxistas revolucionários.
A seguir, relata o prosseguimento dessa aventura surrealista, a traduzir-se em publicações, manifestações e atividades no mundo todo, freqüentemente ignoradas pela mídia e especialistas da área universitária, levando-o a afirmar: …pior para os críticos, especialistas e outros dignos membros perpétuos da Academia das Inscrições e Belas-Letras. O surrealismo está alhures. (parafraseando Breton, que por sua vez adaptou Rimbaud, no final do primeiro Manifesto, ao dizer que a verdadeira vida está alhures, em outro lugar).
Essas observações têm um alvo: aqueles do grupo liderado por Breton que se moveram na direção da Sorbonne e outras universidades, e de núcleos acadêmcios de pesquisa, como o C. N. R. S. e o Centre de Recherches Surréalistes, dirigido por Henri Béhar, biógrafo de Breton, autor de obras sobre surrealismo e de estudos importantes sobre Alfred Jarry.
Mas Löwy, neste capítulo sobre O surrealismo depois de 1969, teria que mostrar melhor o que há nesse alhures, para que os leitores saibam o que, nele, ultrapassa o epigonal. Apenas elencar publicações, grupos e atividades equivale a um relatório protocolar. Não adianta dizer-se surrealista e declarar o ímpeto revolucionário, sem mostrar algo no plano da criação, da produção intelectual. É um paradoxo: mas, com todo o seu discurso crítico com relação a artes e literatura, o que mantém o interesse por surrealismo é sua ligação ao melhor do que se produziu nesses campos no século XX, incluída, frise-se, a obra de Breton. Por isso, por ser um pensador e um escritor denso e complexo, é estudado, inclusive na área acadêmica. Além disso, um pouco de teoria literária nunca fez mal a ninguém. Estudos universitários sobre surrealismo não precisam ser vistos como antagônicos com relação a seu prosseguimento como movimento. E trabalhos como aqueles dos estudiosos ligados a Béhar, bem como os scholars norte-americanos por sua vez ligados a Anna Balakian, trazem contribuição real para o conhecimento de obras surrealistas. Não há motivo para ninguém - nem os da ala acadêmica, nem os militantes - quererem monopólio do surrealismo, nesta altura.
Conforme observado acima, na introdução e nos capítulos iniciais de A estrela da manhã - Surrealismo e marxismo, Löwy dava a impressão de que a discussão da relação entre marxismo e surrealismo, da compatibilidade entre ambos, seria enfrentada no corpo do livro. Há até mesmo um parágrafo sobre Philosophie du surréalisme de Ferdinand Alquié (de 1955), um dos autores que achavam que não, que essa compatibilidade não existia. Já em 1933, Alquié havia denunciado o vento de cretinização sistemática que sopra da URSS, em uma carta que foi publicada em SASDLR, a revista de então dos surrealistas, antecipando a ruptura definitiva de Breton com o estalinismo em 1935. A tese de Alquié em Philosophie du surréalisme, polêmica, jamais foi impugnada por Breton - tanto é que continuou a participar das publicações surrealistas e a constar como fonte bibliográfica. Simplificando uma argumentação técnica em uma obra complexa, para Alquié, por trás de cada referência a Marx por Breton, estava Hegel; e, por trás de cada referência a Hegel, estava Kant.
Na argumentação de Löwy há um silogismo, implícito em seu modo de tratar a questão, diz ele, sempre apaixonante da revolução: o surrealismo é revolucionário, pois a utopia revolucionária é a energia musical deste movimento; o marxismo é revolucionário; portanto, são do mesmo âmbito, concordes, afins. Pode-se chegar ao contrário, utilizando as categorias revolução e revolta do modo como o faz Octavio Paz, em Signos em Rotação, vendo-as como antitéticas. Nesse caso, surrealismo pertence ao âmbito da revolta; marxismo, ao da revolução.
Breton, note-se, distinguia rebelião romântica e pensamento marxista, até mesmo ao querer transformá-los em um só, como na célebre proclamação de 1935: “Transformar o mundo”, disse Marx; “mudar a vida”, disse Rimbaud: estas duas palavras de ordem, para nós, são uma só.
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