Sunday, July 06, 2008
DA MISÉRIA NO MEIO ESTUDANTIL
Assunto: da miséria do meio estudantil
DA MISÉRIA DO MEIO ESTUDANTIL
CONSIDERADA NOS SEUS ASPECTOS ECONÓMICO, POLÍTICO, SEXUAL E ESPECIALMENTE
INTELECTUAL E DE ALGUNS MEIOS PARA A PREVENIR
Libelo escrito por membros da Internacional Situacionista & estudantes da
cidade de Estrasburgo no ano de 1966
A espectacularização da reificação no capitalismo moderno impõe a cada
indivíduo um papel na passividade generalizada. O estudante não escalpa a
uma tal lei. Trata-se, no seu caso, de desempenhar um papel provisório, que
o prepara para o definitivo papel que virá a assumir, na sua qualidade de
elemento positivo e conservador, no funcionamento do sistema mercantil. Este
seu papel não é outra coisa senão uma iniciação.
Iniciação que retoma, magicamente, todas as características da iniciação
mítica, mantendo-se inteiramente separada da realidade histórica, individual
e social. O estudante é um ser partilhado entre um estatuto presente e um
estatuto futuro claramente distintos, e cuja fronteira vai ser mecanicamente
transposta. A sua consciência esquizofrénica permite-lhe isolar-se numa
"sociedade de iniciação", desconhecendo o seu futuro e encantando-se com a
unidade mística que lhe oferece um presente ao abrigo da história. A razão
de ser do derruimento da verdade oficial -quer dizer, económica - é bastante
simples de desmascarar: a realidade estudantil só dificilmente se encara de
frente.
(...)
A colonização dos diversos sectores da prática social limita-se a deparar
com a sua mais gritante expressão no mundo estudantil. A transferência, para
os estudantes, de toda a má consciência social, dissimula, na realidade, a
miséria e a servidão de todos.
São, porém, de ordem bem diversa as razões em que se alicerça o nosso
desprezo pelo estudante. Tais razões não dizem apenas respeito à sua miséria
real; referem-se, também, à sua complacência perante todas as misérias; à
sua doentia propensão para consumir, em sossego, alienação, com a esperança,
perante a falta de interesse geral, de interessar a sua privação particular.
As exigências do capitalismo moderno fazem com que os estudantes, na sua
maioria, venham a ser quadros profissionais secundários (isto é, algo
equivalente àquilo que era, no século XIX, a função do operário qualificado
) .Perante o carácter miserável, que facilmente se pressente, deste futuro
mais ou menos próximo que o "indemnizará" da vergonhosa miséria do presente,
o estudante prefere voltar-se para o seu presente e decorá-lo com ilusórios
prestígios. A compensação, em si mesma, é por demais lamentável para que
nela nos detenhamos; e tão-pouco com ela poderá cantar vitória no futuro. É
a razão por que se refugia num presente irrealmente vivido.
Escravo estóico, o estudante julga-se tanto mais livre quanto o tolhem todas
as grilhetas da autoridade. Tal como a sua nova família, a Universidade, ele
supõe-se o mais "autónomo" dos seres sociais, quando, pelo contrário,
depende directa e conjuntamente dos dois mais poderosos sistemas de
autoridade social: a família e o Estado. O estudante é deles o filho bem
comportado e reconhecido. Seguindo a mesma lógica do filho submisso,
participa de todos os valores e mistificações do sistema, e em si os
concentra. Aquilo que eram ilusões impostas aos assalariados torna-se
ideologia interiorizada e veiculada pela massa dos futuros quadros
profissionais secundários.
(...)
Recolhendo um pouco dos sobejos de prestígio da Universidade, o estudante
ainda se sente satisfeito por ser estudante. Tarde demais! O ensino mecânico
e especializado que recebe está tão profundamente degradado (em relação ao
antigo nível da cultura geral burguesa ) quanto o seu próprio nível
intelectual na altura em que a tal ensino acede, e isto pelo simples facto
de a realidade que domina o conjunto destas coisas - o sistema económico
-reclamar uma fabricação maciça de estudantes incultos e incapazes de
pensar. Que a Universidade se tenha tornado uma organização – institucional
- da ignorância, que a própria "alta cultura" se dissolva ao ritmo da
produção em série dos professores, que todos estes professores sejam uns
cretinos, de tal modo que a maior parte dentre eles provocaria a algazarra
de qualquer público de liceu -, tudo isso o ignora o estudante; e,
respeitosamente, continua a escutar os seus mestres, com a vontade
consciente de perder todo e qualquer espírito crítico, a fim de melhor
comungar na ilusão mística de se ter tornado um "estudante", isto é, alguém
que seriamente se ocupa na aprendizagem de um saber sério, na expectativa de
assim lhe serem confiadas as últimas verdades. Trata-se, aqui, de uma
menopausa do espírito. Tudo quanto se passa hoje nos anfiteatros das escolas
e das faculdades será condenado na futura sociedade revolucionária como
ruído, socialmente nocivo. O estudante, desde já, dá vontade de rir.
O estudante não se dá conta sequer de que a história altera também o seu
irrisório mundo "fechado". A famosa "Crise da Universidade", detalhe duma
crise mais geral do capitalismo moderno, continua a ser objecto de um
diálogo de surdos entre diferentes especialistas. Mas apenas traduz, muito
simplesmente, as dificuldades de um ajustamento tardio deste sector especial
da produção a uma transformação de conjunto do aparelho produtivo. Os
-resíduos da velha ideologia da universidade liberal burguesa banalizam-se
na altura em que a sua base social se dissolve. A Universidade pôde
julgar-se uma força autónoma na época do capitalismo de livre-câmbio e do
seu Estado liberal, que lhe concedia uma certa liberdade marginal. Na
realidade, porém, ela dependia estreitamente das necessidades deste tipo de
sociedade: fornecer à minoria privilegiada, que seguia estudos, a cultura
geral adequada, antes de esta se integrar nas fileiras da classe dirigente,
da qual, a bem dizer, mal tinha saído. Daí o ridículo desses nostálgicos
professores exasperados por terem perdido a sua antiga função de cães de
guarda dos futuros dirigentes em proveito dessoutra, bem menos nobre, de
cães de pastor que conduzem, segundo as necessidades planificadas do sistema
económico, as fornadas de "colarinhos brancos" para as suas fábricas e
escritórios respectivos. São eles, esses ridículos professores, que opõem os
seus arcaísmos à tecnocratização da Universidade e imperturbavelmente
continuam a debitar os restos duma cultura dita geral a futuros
especialistas que não saberão o que fazer dela.
(...)
Por virtude da sua situação económica de extrema pobreza, o estudante é
condenado a um certo modo de sobrevivência bem pouco invejável. Mas, sempre
satisfeito por ser aquilo que é, eleva a sua miséria trivial à categoria de
um "estilo de vida": o miserabilismo e a boémia. Ora a "boémia", já longe de
constituir uma solução original, nunca é autenticamente vivida a não ser na
sequência duma rotura completa e irreversível com o meio universitário. Os
partidários da boémia no seio dos estudantes (e todos se gabam de o ser um
pouco) limitam-se pois a agarrar-se a uma versão artificial e degradada do
que não passa, e no melhor dos casos, duma medíocre solução individual. Até
o desprezo das velhinhas provincianas, por isso, eles merecem. Estes
"originais" continuam, trinta anos depois do que fez esse excelente educador
da juventude que foi Wilhelm Reich, a ter os comportamentos erótico-amorosos
mais tradicionais, reproduzindo as relações genéricas da sociedade de
classes nas suas relações intersexuais. A aptidão do estudante para se
transformar em militante de toda e qualquer espécie é, aliás, da sua
impotência, elucidação bastante. Na margem de liberdade individual permitida
pelo espectáculo totalitário, e apesar do seu emprego do tempo mais ou menos
descuidado, o estudante continua a ignorar a aventura, a ela preferindo um
espaço-tempo quotidiano feito de estreiteza, ordenado em sua intenção pelas
barreiras desse mesmo espectáculo.
(...)
Mas a miséria real da vida quotidiana estudantil encontra a sua compensação
imediata e fantástica naquilo que é o seu ópio principal: a mercadoria
cultural. No espectáculo cultural, o estudante encontra naturalmente o seu
lugar de discípulo respeitador. Próximo do lugar de produção sem nunca a ele
aceder -o Santuário mantém-se-lhe inacessível-, o estudante descobre a
"cultura moderna" na sua qualidade de espectador admirativo. Numa época em
que a arte morreu, ele continua a ser o principal fiel dos teatros e dos
cine-clubes, e o mais ávido consumidor do seu congelado cadáver, agora
difundido, embrulhado em celofane, nos supermercados feitos para as
donas-de-casa da abundância. Nisso participa ele sem reservas e de boa fé. É
esse o seu elemento natural. Se as "casas da cultura" não existissem, o
estudante tê-las-ia inventado. Ele é a perfeita demonstração das mais banais
análises da sociologia norte-americana do marketing: consumo ostentatório
estabelecimento duma diferenciação publicitária entre produtos idênticos na
sua nulidade (Pérec ou Robbe-Grillet; Godard ou Lelouch).
(...)
Na sua aplicação, o estudante julga-se de vanguarda porque viu o último
filme de Godard, porque comprou o último livro argumentista ou porque
participou no último happening duma besta chamada Lapassade. Este ignorante
toma por novidades "revolucionárias", garantidas por marca, os mais
descorados sucedâneos de antigas pesquisas efectivamente importantes no seu
tempo, posteriormente adoçadas com vista ao mercado. A questão reside, a
este respeito, para o estudante, em preservar continuamente a sua posição
cultural. O estudante orgulha-se de comprar, como toda a gente compra, as
reedições em livros de bolso duma série de textos importantes e difíceis que
a "cultura de massas" propaga a uma cadência acelerada. Acontece,
simplesmente, que o estudante não sabe ler, contentando-se em consumi-los
com os olhos.
(...)
Porque o estudante não pode revoltar-se contra o quer que seja sem se
revoltar contra os seus estudos; e a necessidade desta sua revolta faz-se
nele sentir menos naturalmente do que no operário, que se revolta
espontaneamente contra a sua condição de operário. O estudante, porém, é um
produto da sociedade moderna, ao mesmo titulo que Godard e a Coca-Cola. A
sua extrema alienação só pode ser contestada pela contestação da sociedade
no seu conjunto. De modo algum esta crítica pode realizar-se no terreno
estudantil: o estudante, como tal, apropria-se de um pseudovalor que o
impede de tomar consciência do seu desapossamento real, e é por tal facto
que patina no cúmulo da falsa consciência. Por toda a parte onde a sociedade
moderna começa a ser contestada, todavia, isso significa que há na juventude
a revolta, revolta que corresponde, de imediato, a uma crítica total do
comportamento estudantil.
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