Wednesday, January 14, 2009
COMUNICADO DOS SURREALISTAS PORTUGUESES
COMUNICADO DOS SURREALISTAS PORTUGUESES
Novembro de 2006 (ver nota 1 abaixo)
Por um deserto exaustivamente longo, seguimos o nosso caminho de inventores desconhecidos, enquanto um corpo de mulher decapitado nos sorri, e uma mêsa muito branca e sangrando sempre caminha para nós ...
Em cada país a posição surrealista tem de se colocar conforme as suas próprias possibilidades e formas de actuação, condicionada pelo meio em que existe e é obrigada a ser e servindo da capacidade de revolucionar-destruir-criar que êsse mesmo meio lhe proporciona. O surrealista não é um mártir da ciência ou de qualquer outro mito aceite pela sociedade dita organizada, nem um combatente pago (ou não-pago) para servir ordens emanadas de qualquer partido ou organização mais ou menos política ou filantrópica. O surrealista utiliza o seu próprio mito, venha ele das cavernas dos anões de sete olhos ou das máquinas de costura antiquíssimas, serve-se do seu mito particular para seguir pelos caminhos tenebrosos e ainda por descobrir onde existem pontes de velhos manequins, e usa-o conforme a sua necessidade e furor pessoais dentro do meio em que por acaso existe, sem procurar o martírio merdoso heroico-patriótico dos homens de partido. Por isso as actuações tem de se adaptar ao local em que se situam. Por isso a nossa afirmação de que, em Portugal, não é possível a existência de qualquer agrupamento ou movimento dito surrealista, mas de que apenas poderão existir indivíduos surrealistas agindo, por vezes, em conjunto.
Debaixo de qualquer ditadura (fascista ou stalinista) não é possível uma actuação surrealista organizada sem as respectivas consequências de represálias policiais e portanto sem o aparecimento dos respectivos mártires e herois. A acção surrealista, nêste caso particular, está limitada a uma série de actos que poderíamos chamar de guerrilhas, ou a um acomodamento reaccionário com os respectivos ministérios de PROPAGANDA. Das duas posições é, sem dúvida, a primeira a única possível embora, por vezes, bastante difícil de manter.
Quando num país o poeta não é mais poeta se não pertencer a um partido e o homem não pode ser homem se não for um carneiro, o grande mito do século - LIBERDADE - deixa de ser mito para se tornar uma realidade visível que se procura com ânsia e desejo. Quando num país a egreja católica tranforma os homens em seres sem sexo e a ditadura do Papa obriga os poetas a serem padres ou castrados, o nosso furor sexual obriga-nos ao grande acto mágico da subversão de valores e à afirmação total do nosso direito de actuar livremente, de sermos os verdadeiros poetas do amôr, da destruição, da surrealidade.
Queremos afirmar - e afirmamos - que a verdadeira actuação surrealista, não se limitando ao campo político, ao filosófico, ao estético, ou a qualquer outro mas reúnindo-os todos no Real-Imaginário, não pode nem deve seguir a rota de qualquer um destes caminhos mas agir dentro de todos eles. Por isso cremos que aqui, em Portugal, estando, como estamos, limitados por todos os lados, só temos à nossa frente a feroz presença do desejo individual para lutarmos contra a extinção do Homem que o estado vai realizando sistemáticamente e não podemos, portanto, enfileirar em qualquer partido que, a título de futuras liberdades políticas (ou outras quaisquer) nos faria cair fatalmente noutra ditadura. Também não acreditamos que o seguir esta ou aquela tendência estética, que a título de revolucionária, pretenda criar outro tipo de academismo, fôsse de qualquer maneira suficente para nos levar à libertação desejada. Qualquer espécie de realismo-socialista com todo o seu cortejo de estéticas, literaturas e políticas de partido, é tão prejudicial à liberdade do Homem como uma ditadura fascista, apenas conseguindo pôr no lugar de deus um outro deus igualmente absurdo.
Substituir um Papa por outro Papa é o que de forma nenhuma podemos admitir. O Homem só será livre quando tiver destruído toda e qualquer espécie de ditadura religioso-política ou político-religiosa e quando fôr universalmente capaz de existir sem limites. Então o Homem será o Poeta e a poesia será o Amor-Explosivo.
A nossa posição de surrealistas portugueses é, portanto, feita de pequenos actos, de esporádicas sortidas no campo do desconhecido, é feita de trasnformações subitas em que a serpente de repente deixa de ser o pequeno animal caseiro que todos nós conhecemos para começar a caminhar na floresta petrificada povoada de sombras e de olhos de panteras.
Contra a transformação do Homem em santo canonizado, propomos a aparição do Homem e da Mulher eternamente abraçados, a súbita nascença na praia abandonada do Cavalo de Sete Cabeças, filho do Fogo e da Água. Contra a adaptação do Homem numa máquina de defender pátrias e partidos, propomos a criação do Homem-Asa, do Homem que percorrerá o Universo montando um comêta extremamente longo e fulgurante.
Para a pátria, a egreja e o estado a nossa última palavra será sempre: MERDA.
Lisboa, Abril de 1950
Mário Henrique Leiria João Artur Silva Artur do Cruzeiro Seixas
Este COMUNICADO DOS SURREALISTAS PORTUGUESES foi enviado em 25-4-50 para Londres ao poeta Simon Watson Taylor e destinava-se a ser publicado conjuntamente com outras comunicações de grupos surrealistas de diversas nações. Por razões que se desconhecem permaneceu inédito até Petrus o publicar no terceiro volume da obra "Os Modernistas Portugueses, dos Independentes aos Surrealistas". Em 1973 a revista PHASES (nº 4, 2ª série) publicou este texto traduzido por Isabel Meyrelles.
A cidade surrealista continua-se construindo com a surrealidade de todos os Poetas, quaisquer que sejam as suas decisivas experiências. Pouco mais de meio século do primeiro aparecimento deste comunicado, os seus autores como outros surrealistas portugueses e ulteriores (abaixo assinados) continuam a afirmar a sua posição ao espírito eminentemente livre manifestando o seu apoio incondicional àqueles que, em devido tempo, disseram e escreveram a sua posição. Pretendemos que o nossa justiça seja pelo menos semelhante nesta actualização, ao homenagearmos com este abaixo assinado.
Novembro de 2006
Miguel de Carvalho Mário Cesariny Cruzeiro Seixas André Escarameia
Carlos Silva Paulo Costa Domingos Seixas Peixoto Raúl Perez
Isabel Meyrelles Nicolau Saião Carlos Martins Alvaro de Navarro
NOTA (1):
Trata-se do derradeiro comunicado assinado por Mário Cesariny, pouco antes de falecer.
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