Revista Gândara 1
LUSO-BEAT JAZZ
Miguel Martins
Surge este breve artigo na seqüência de gentilíssimo convite endereçado pela professora Izabel Margato, e dá continuidade a um trabalho iniciado há cerca de 12 anos (Martins, 1993), que se foi espraiando por artigos de natureza diversa e teve o seu desenvolvimento de maior envergadura no livro Jazz e literatura (Martins, 1998).
Por óbvias razões de contenção, abster-me-ei de elaborar sobre o conceito as origens e a evolução da beat generation norte-americana, geração esta, aliás, de créditos há muito firmados na História da Literatura (Cunliffe, 1989). Para uma excelente introdução a estes aspectos, bem como às obras dos seus autores mais destacados, sugiro a leitura da antologia organizada por Anne Waldman (1996), da qual constam informadíssimas bibliografia, filmografia e discografia com que dar seguimento a tal labor.
Quanto à repercussão deste movimento na literatura portuguesa, julgo essencial destacar dois períodos distintos:
Em primeiro lugar, o início dos anos 60, com uma série de jovens autores e declamadores reunidos em torno da microeditora Best-Sellers, dirigida por Jorge Daun, pseudónimo de José de Melo, responsável, desde logo, por Geração batida (Daun, 1963), a primeira antologia de textos beat publicada em Portugal. Entre esses enfants-terribles, avultavam o hoje realizador e crítico cinematográfico Lauro António e a hoje actriz Maria do Céu Guerra, cujo livro São mortas as flores (1963), escrito aos 18 anos, urge reeditar, quer pelo seu valor intrínseco, quer por sintetizar o brado de uma geração que, bafejada por ventos libertadores, vindos, sobretudo, do outro lado do Atlântico (o maio de 68 francês estava, ainda, longe de acontecer), não se deixava já espartilhar pela tacanhez do fascismo luso. Desta obra, cito:
Hoje peço arestas e ângulos agudos mas verdades inteiras.
Acabem com o morno e com os outros e com as mãos sem sol.
E guardem para vocês as repartições de finanças e os jornais.
(Guerra, 1963, p. 7)
Quanto ao segundo período referido, ocorre já depois do 25 de abril de 1974, em pleno processo revolucionário, e centra-se nas edições Távola Redonda, dirigidas por Manuel Cadafaz de Matos, e onde viriam a lume obras do próprio, bem como de João Carlos Raposo Nunes, António Cândido Franco, António Cabrita, Abel Neves e Levi Condinho, este último figura central da presente abordagem, conforme adiante se verá.
Contudo - e apesar de se excluir aqui qualquer pretensão inventariadora -, seria imperdoável não mencionar a obra de Andre Shan Lima, um outsider relativamente aos grupos mencionados, mas o mais assumidamente beat dos poetas portugueses e, porventura, o único a ser editado pela mítica City Lights Books, de Lawrence Ferlinghetti (Lima, 1987), poeta que, aliás, traduziu (Ferlinghetti, 1986). Do livro bilingue Valse de la memoire, cito:
sobrevoando a brisa
para ti oh menina realidade
o silêncio abre os olhos
a lâmpada ilumina-os
então sacudimos a cabeça
e afogamo-nos em álcool
in profundis
destilam-se deuses e revoltas
sobrevoando sem cor nem forma
voltamos ao nada
deambulamos em sapatos estranhos
arrancamos folhas das árvores
e fumamos muito (Lima, 1987, p. 71)
Bem assim, importa referir Jorge Fallorca, outro inquestionável beatnik. De A luva in love (1977, p. 40):
eu ia todo porreiro na minha e fui sequestrado por um coito -
que isto fique assente de uma vez para sempre - metido
num corpo com que não tenho nada a ver
E, ainda, Fernando Grade, de Também os beijos têm osso (1997, p. 32):
Era o bolor das árvores e das armas.
Ao fundo do tempo, as feras cantavam.
Faziam-se viagens por dentro das janelas,
onde os fósseis espiavam as raparigas.
Por trás das cadeiras a caverna era uma ideia de
seda, cheiro de fruta muito doce,
ácida verruga.
Os bodes também choram.
É possível que a erva cresça aqui.
E, por fim, Alexandre Saldanha da Gama, poeta 'expatriado', tal como Shan Lima. De Pastorinhas (1999, p. 72):
Saio sozinho para ir ao Sounds beber um copo
Noite de merda para ir beber um copo sozinho
Mas esta noite não suporto o silêncio da casa
A presença da ausência da Sylvie é pesada
Cada vez que ela aparece com as suas fanfarronadas
Faz de mim um ser miserável que precisa de beber para esquecer
Ela tem vergonha da minha companhia é por isso que só vem à
noite e desaparece de manhã
Quando saio à noite para beber um copo sozinho
Debaixo da chuva sou eu que tenho vergonha da minha companhia
Chegados a este ponto, e antes de penetrar na obra de Levi Condinho e, mais precisamente, na presença do jazz nessa mesma obra, é crucial esclarecer qual é a multímoda importância desta música para a escrita beat.
Essencialmente, diria que se verifica um fascínio pelo jazz, por parte dos beatniks, o qual conduz a constantes alusões a músicos e canções e, sobretudo, a um modus operandi similar ao destes, com a improvisação e o débito acelerados a sobreporem-se a uma arquitectura autovigiada e canónica e à valorização de uma certa rítmica possibilitadora de declamações plenas de musicalidade, quando não de facto musicadas.
Sobre Condinho, nascido em 1941, autor de, apenas, quatro títulos individuais, disse o músico e musicólogo Jorge Lima Barreto (1997, p. 169): "Levi Condinho, melómano esclarecido, escreveu poemas/metáforas sobre criações musicais". E eu próprio, alhures (Martins, 1998, p. 101), chamei-lhe "o mais torrencial dos poetas portugueses, em termos de alusões ao jazz". Se não, intentemos o rol dos músicos de jazz presentes na sua obra, utilizando a antologia poética que cobre o período que vai de 1965 a 2000 (Condinho, 2001): Miles Davis, Ella Fitzgerald, Ornette Coleman, Django Reinhardt, Archie Shepp, Glenn Miller, Count Basie, Jorge Lima Barreto, Lester Young, John Coltrane, Keith Jarrett, Louis Armstrong, Thelonious Monk, Duke Ellington, Anthony Braxton, Milt Jackson, Charlie Parker, Billie Holiday, Nat King Cole, Eartha Kitt, Mahalia Jackson, Pearl Bailey, Herbie Hancock, Cecil Taylor, Julian Adderley. Este conjunto é bem revelador do ecletismo do autor, no âmbito do jazz (ao que acrescem referências a compositores 'eruditos', antigos, clássicos e contemporâneos, bem como a músicos da pop e do rock). Assim, verificamos que cobre um espectro que vai praticamente dos alvores do jazz (Armstrong, Reinhardt) ao 'Free' (Coleman, Shepp, Barreto, Braxton, Taylor), passando pelo swing e pelo bebop. De igual modo, surgem, a par de figuras consagradas, nomes mais obscuros, como o de Pearl Bailey, vocalista para quem no "The Penguin Guide to Jazz on CD" (Cook et al., 1998) se encontram apenas duas entradas: uma em "The King Cole Trios Live: 1947-48" e outra em "Cootie Williams, 1941-1944".
Estas referências a músicos ocorrem por três ordens de razões: ou a mera evocação de memórias pessoais (um concerto, uma audição partilhada etc.), ou o louvor a músicos e à música, ou a sua ligação à luta anti-racista. Vejamos três exemplos do mesmo:
devaneios
as Tentações de Santo Antão do Bosch
nas janelas verdes
o ornette coleman em cascais
nós fornicando na Mata do Cabeço de Deus
o Quintelas bêbedo a beijar todos os amigos
Pierrot-le-Fou
beijar bocas de mulher por aí fora
Eugénio de Andrade Herberto Hélder
Cesário Verde José Gomes Ferreira
Paul Éluard etc etc
a Suzete a sorrir-me ao balcão
do banco da marinha grande
canto gregoriano à meia noite
frente a uma garrafa de vinho.
a minha avó a dizer-me que
Django Reinhardt era a música do demónio
- tinha eu 16 anos
o António Serafim a descrever
uma caldeirada no montijo
porra que não vou ser capaz de morrer
Miles Davis
a música Miles
é uma planície de neve
só a neve se vislumbra
e o frio atiça a capacidade de amar
tu ensinas o amor
e a planície
estendida
desvirginada
em patas de sangue vivo
clama amor negado
Basin Street Blues
Porque não vens daí comigo
Lá abaixo ao Mississipi
Canta Ella Fitzgerald
Respondo
Vou contigo
Se me levares aos bares
De Basin Street
E me mostrares tudo
O que fez na tua voz um vinho acre
Sexo nimbado de folhas silvestres
Para eu poder
Proclamar
de pé
do alto do Empire State Building
que a tua raça
se vingou
criando uma flor
em cada golpe de chicote
Levi Condinho: um beatnik português com muito jazz na poesia - um poeta a descobrir, de ambos os lados do Atlântico.
ReferÊncias bibliogrÁficas
BARRETO, Jorge Lima. Musa lusa. Lisboa: Hugin, 1997.
CONDINHO, Levi. Roteiro cego: antologia poética (1965-2000). Alcobaça: Rebate, 2001.
COOK, Richard et al. The penguin guide to jazz on CD. London: Penguin Books, 1998.
CUNLIFFE, Marcus. História da literatura dos Estados Unidos. Mem-Martins: Europa-América, 1989.
DAUN, Jorge. Geração batida. Lisboa: Best-Sellers, 1963.
FALLORCA, Jorge. A luva in love. Lisboa: Assírio & Alvim, 1977.
FERLINGHETTI, Lawrence. A boca da verdade. La Garenne: Edição do Autor, 1986.
GAMA, Alexandre Saldanha da. Pastorinhas. Paris: Albatroz, 1999.
GRADE, Fernando. Também os beijos têm osso. S. João do Estoril: Mic, 1997.
GUERRA, Maria do Céu. São mortas as flores. Lisboa: Best-Sellers, 1963.
LIMA, Andre Shan. Valse de la memoire. s.l.: City Lights Books, 1987.
MARTINS, Miguel. Beatniks portugueses. História, n. 171, dez.-jan. 1993.
______. Jazz e literatura. Porto: Campo das Letras, 1998.
WALDMAN, Anne. The beat book: poems & fiction from the beat generation. Boston: Shambala, 1996.
retirado de http://www.letras.puc-rio.br/Catedra/Revista/gandara_10.html
Wednesday, October 01, 2008
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