Monday, October 24, 2011
ANIMAL DE PALCO
Nos últimos tempos, apesar de ter vários amigos e amigas, João continuava a ser um solitário. Na aldeia onde morava, João só falava com três ou quatro pessoas: o barbeiro, a D. Rosa, o intelectual da aldeia, o gerente do hipermercado. Como não se metia nas conversas do futebol, como não se dava a conhecer, como raramente apanhava bebedeiras na aldeia, João mantinha uma relação distante com as pessoas: bom dia, boa tarde, mais nada. João era profundamente urbano. Tinha as tertúlias, com outros poetas e escritores no Piolho, tinha as noites de poesia no Púcaros e no Pinguim, tinha as amigas. A aldeia aborrecia-o, enchia-o de tédio, nada se passava. As mulheres, quando apareciam, pareciam já tomadas. É claro que João ocupava o tempo a ler e a escrever, sobretudo na confeitaria "Motina", onde não havia televisão, e cujo gerente viria a suicidar-se. Há muito que João havia abandonado as ideias de suicídio, sentia-se pleno de auto-estima, com as revoltas anti-capitalistas no país e no mundo e também com o ritmo da sua escrita, com os livros publicados e a publicar. Na esplanada da confeitaria "Ni", que tinha uma empregada linda com uma voz muito doce, joão olhava as àrvores e sentia o vento de outubro, desejoso de uma mulher para fecundar. Era o poeta à mesa, o Peter Owne que ele desenhava aos 15 anos, o poeta beat das barbas. Lembrou-se do Carlos Pinto, o antigo gerente do Púcaros, que foi um exemplo de camaradagem, afectividade e de busca do verdadeiro socialismo. "Aqui, no Púcaros, não há classes", proclamava. João cresceu com essas noites de poesia, onde a palavra se inflamava sem censuras. Conheceu grandes ovações, pessoas que o vinham felicitar no fim da performance mas também recepções frias, fracassos. Contudo, não há dúvida, tornou-se um animal de palco. Agora queria mesmo uma mulher para fecundar, para criar o homem novo, fora da máquina. João acreditava no super-homem de Nietzsche. Pensava que ele só poderia vir dos artistas, dos verdadeiros criadores. E ele era, naturalmente, um deles. Quão distantes pareciam os tempos da depressão. Agora todo ele era tempestade, brilho, fogueira. Até esquecia o tédio da aldeia. Começava ali um novo ciclo, um novo mundo, um novo paradigma.
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