Saturday, November 15, 2008

ASSIM FALAVA ZARATUSTRA


5. Em Assim Falou Zaratustra, no capítulo que abre o livro, "O prólogo de Zaratustra", Zaratustra, então com mais ou menos 30 anos de idade, isola-se do mundo e passa por um processo de autoconhecimento. Dez anos depois, por uma necessidade imperiosa de anunciar o que pensara nos dias de seu resguardo purificador, o personagem decide iniciar o seu ocaso. Ao descer de sua caverna na montanha para dirigir suas palavras aos citadinos, afirma-lhes em praça pública que o homem é algo que deve ser superado e promete-lhes em seguida ensinar a doutrina do super-homem. Assim proclama: “O super-homem é o sentido da terra. Fazei a vossa vontade dizer: ‘Que o super-homem seja o sentido da terra!’ ” (NIETZSCHE, 2006, p. 36). Zaratustra então pede aos seus ouvintes que permaneçam fiéis à terra e não acreditem em nada que seja exterior a ela. Em seus discursos, investe pesado contra os pregadores do cristianismo, os que prometem ganhos para além da terra, isto é, as bem-aventuranças no céu após a morte. Chama-os de envenenadores e desprezadores da vida, “dos quais a terra está cansada” (NIETZSCHE, 2006, p. 36). Um cansaço que, numa leitura crítica e atual, diz muito sobre o colapso que Gaia se vê em pleno século XXI. A terra está cansada não só das palavras vãs e enganadoras a que Nietzsche se referiu na voz de Zaratustra, mas principalmente do modelo técnico-científico a que está imposta, adoecendo para corresponder aos padrões dominadores que têm no consumo um fim em si mesmo. Essa é a delinqüência maior do homem, a de “atribuir mais valor às entranhas do imperscrutável do que ao sentido da terra” (NIETZSCHE, 2006, p. 36). Ir ao encontro do sentido da terra para Zaratustra significa caminhar na direção do super-homem, tão enigmático quanto a própria afirmação do que significa propriamente retomar o sentido da terra. Precisa-se perguntar: o que é o sentido da terra? A sua destruição progressiva através de processos irreversíveis de relacionamento com o real? Ou o respeito por sua própria dinâmica cósmica de estar conjugada com forças que escapam ao homem? Mas se for mesmo preciso retomar esse sentido, por onde começar? Se, no dizer de Zaratustra, era a alma que outrora olhava o corpo como desgrenhado e faminto, que alma é essa de agora que faz da terra um planeta arrasado? Na narrativa de Nietzsche, o super-homem surge como uma esperança num mundo onde não mais importam os melhores valores humanos, como a felicidade, a razão, a virtude, a justiça e a compaixão.

6. Zaratustra conclama a seus ouvintes que “o que há de grande no homem é ser uma ponte, e não meta: o que pode amar-se no homem, é uma transição e um ocaso” (NIETZSCHE, 2006, p. 38). Diz ainda: “Amo aqueles que, para o seu ocaso e sacrifício, não procuram, primeiro, um motivo atrás das estrelas, mas se sacrificam à terra, para que a terra, algum dia, se torne do super-homem” (NIETZSCHE, 2006, p. 38). O motivo atrás das estrelas corresponde na fala de Nietzsche à doutrina platônica das almas e seus desdobramentos neoplatônicos e cristãos. Curioso é que, atualmente, podemos ver que a busca desesperada de salvar a terra do desconforto da escassez de água faz com que cientistas de nossa época especulem cada vez mais sobre a existência desse líquido vital em outros planetas. Esse fato, que habita os noticiários de nosso tempo, nos informa sobre a busca de uma esperança de vida que esteja além da terra. Corresponde a uma insistência em ver a realidade, mesmo que a interplanetária, como mera disponibilidade de recursos a serem usados pelo homem. Fiel à terra, Zaratustra exalta aquele que a prepara para o super-homem e nela inventa o melhor modo de construir sua casa. Seu discurso é o do amor. Zaratustra ama as almas transbordantes e os corações livres. O homem, comparado a uma negra nuvem com suas pesadas gotas de chuva, é quem pode liberar o raio iluminador. Zaratustra se diz o prenunciador desse raio que se chama super-homem: “Já é tempo de o homem estabelecer a sua meta. Já é tempo de o homem plantar a semente da sua mais alta esperança. Seu solo ainda é bastante rico para isso. Mas algum dia, esse solo estará pobre e esgotado, e nenhuma árvore poderá mais crescer nele” (NIETZSCHE, 2006, p. 40).

7. Plantar uma semente é uma metáfora que une terra e homem. Unidos, serão férteis. Separados, permanecerão estéreis. Que é o homem sem o cultivar? Explorar a terra até o seu cansaço ou prepará-la para receber sua doação? Ambientalistas do mundo inteiro se vêem em meio a uma devastação generalizada. O homem se apequena. Os avisos soam como um ultimato. Será esse o último homem a que Zaratustra se refere? Sem ser levado a sério pelos homens, Zaratustra se recolhe ante à multidão e conclui que sua fala não é para ser dirigida ao povo. O curso de seus pensamentos é interrompido por uma série de eventos. Primeiro um morto cai a seus pés. Zaratustra elogia sua coragem, pois esse que morreu estava vivendo o perigo de seu ofício: o de andar equilibrado numa corda estendida num abismo. Zaratustra se vê diante de um cadáver que fora derrubado por um inimigo mortal, fantasiado de palhaço, e pressente os limites de sua missão. Quer falar aos vivos e não aos mortos. Sente que suas anunciações devem ser dirigidas apenas àqueles poucos que lhe derem os ouvidos e que queiram seguí-lo. Uma águia com uma serpente enrolada no pescoço então aparece para ele. São os animais de Zaratustra que, na sua simbologia, representam valores bastante preciosos para a sua jornada. A águia, sendo o animal mais altivo, e a serpente, o mais prudente. Zaratustra pede que os guie. Quer o impossível: a união da altivez com a prudência. Se a prudência por ora lhe abandonar, roga que essa seja substituída pela loucura. O super-homem é um mistério e o raio é como o claro enigma de Nietzsche. O pensador conjuga razão e loucura na voz altiva de Zaratustra. Assim falou Zaratustra: “Onde está o raio que vos lambe com sua língua? Onde, a loucura com que deveríeis ser vacinados? Vede, eu vos ensino o super-homem: porque ele é esse raio e essa loucura!” (NIETZSCHE, 2006, p. 38).

8. Martin Heidegger, entre os anos de 1936 e 1940, deu várias preleções na Universidade de Freiburg tendo como foco o pensamento de Friedrich Nietzsche. Nesses encontros, propôs uma confrontação com a obra nietzscheana. Confrontação para Heidegger é o mesmo que uma crítica autêntica. Repensar o que fora pensado anteriormente e perseguir o sentido das palavras proferidas em sua força e não em sua fraqueza é o que Heidegger entende como um libertar-se para a possibilidade de uma nova abertura. A preleção inicial é sobre A Vontade de Poder, cujo título não diz respeito apenas ao projeto de uma obra capital de Nietzsche, mas significa algo essencial em toda a trajetória do seu pensamento. Afirma Heidegger: “Como o nome para o caráter fundamental de todo ente, a expressão ‘vontade de poder’ dá uma resposta à pergunta sobre o que afinal é o ente. Desde sempre essa é a pergunta da filosofia” (HEIDEGGER, 2007, p. 6).

9. Heidegger destacou três pontos fundamentais na construção da obra filosófica de Nietzsche: o eterno retorno, a vontade de poder e a transvaloração de todos os valores. O pensador diz que em Nietzsche há o co-pertencimento intrínseco desses três pontos. A doutrina da vontade de poder se confunde com a doutrina do eterno retorno e essa unidade, historicamente, pode ser vista como o fator de transvaloração de todos os valores. A vontade de poder como resposta à pergunta diretriz da filosofia – o que é o ente – conjuga-se com a apreensão de Nietzsche a respeito do ser, tido no seu pensamento como devir. Escreveu Nietzsche: “cunhar para o devir o caráter do ser – essa é a mais elevada vontade de poder” (NIETZSCHE apud HEIDEGGER, 2007, ps. 19 e 20).

10. No ensaio "Quem é o Zaratustra de Nietzsche?", a partir de um trecho retirado do capítulo O convalescente, Heidegger reconhece no personagem um porta-voz da vida, da dor e do círculo. Vida é vontade de poder, com a dor que lhe acompanha. O círculo, de forma anelar, por sua vez, configura o eterno retorno do mesmo. Heidegger define numa proposição a essência de Zaratustra. O personagem é o porta-voz de “que todo real é vontade de poder que, enquanto criadora, padece e suporta a vontade que luta consigo mesma e assim se quer a si mesma no eterno retorno do igual” (HEIDEGGER, 2002, p. 89).

11. A vontade de poder, ao estar ligada à pergunta fundamental sobre o ser do ente, corresponde ao “pensamento mais pesado” da filosofia, que é o que a ergue e a destrói. O eterno retorno remete à eternidade e ao instante que essa pergunta se dá. Escreveu Heidegger:

"Eternidade não como um agora estático, nem tampouco como uma seqüência de agoras que se desenrolam até o infinito, mas como um agora que rebate em si mesmo: o que é isso senão a essência velada do tempo? Pensar o ser, a vontade de poder, como eterno retorno, pensar o pensamento mais pesado da filosofia significa pensar o ser como tempo. Nietzsche pensou esse pensamento" (HEIDEGGER, 2007, p. 20).


12. Como se co-pertencem o super-homem e o eterno retorno do mesmo? Sobre o eterno retorno, o “pensamento mais abissal” de Nietzsche, Heidegger, em uma preleção intitulada "Nota sobre o eterno retorno do igual", ressalta que seu entendimento permanece enigmático. O pensador aponta dois caminhos evasivos de compreensão. O primeiro é que o eterno retorno seria uma espécie de mística; no segundo, o eterno retorno seria uma representação já há muito difundida na história do pensamento ocidental. Heidegger diz que o que está a ser pensado a partir do eterno retorno se vela para a metafísica. O pensador relaciona o enigma de Nietzsche com a essência da técnica moderna, atualizando-o, e formula a pergunta: “O que é a essência da máquina moderna senão uma variação do eterno retorno do igual?” (HEIDEGGER, 2002, p. 109).


BIBLIOGRAFIA


HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Tradução de Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. 2006.
--------------------------- Ensaios e Conferências. Traduções de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002.
--------------------------- Nietzsche – Vol. 1. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
MACHADO, Roberto. Zaratustra – tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006.
----------------------------- Ecce Homo – Como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.


Postado por André Vinícius Pessôa às 12:40
http://andreviniciuspessoa.blogspot.com

2 comments:

Unknown said...

Ur blog is very nice...

http://hotspicywallpapers.blogspot.com/

http://shayrionline.blogspot.com/

http://mobileflame.blogspot.com/

Unknown said...

Belo texto que me leva fundo onde eu não queria estar. ;)