Saturday, December 24, 2011

TRIP NO PIOLHO

TRIP NO PIOLHO (texto de ANTÓNIO PEDRO RIBEIRO)
[texto de antónio pedro ribeiro]

TRIP NO PIOLHO

Sou o maior poeta vivo. Poderia dizê-lo. Ainda estou vivo e não vejo outros melhores. Talvez esteja a exagerar. Mas o que é que me impede? Pelo menos, tal como Pessoa, escrevo a um ritmo frenético. Sou o maior poeta vivo. Bem, morto não estou. A médica fala-me de AVC's e de ataques cardíacos. Mas eu vou prosseguindo a viagem. Mesmo que venham dilúvios eu vou permanecer aqui. A conversa dos outros é a matéria-prima. Gostava das minhas primas mas já não as vejo há muito tempo. Segui o meu caminho. Para alguns, o caminho da perdição. Já me apelidaram de maldito. Os outros bebem e eu não. Não preciso. Estou com o pedal todo. D. Sebastião em Alcacer-Quibir com um exército de fantasmas. Sou o maior poeta vivo. O que ganho com isso? Ninguém paga a minha arte. Continuo a escrever. É isso que sei fazer. Poderia escrever continuamente durante horas e horas. Gasto tinta e papel. Têm um preço. Mas um valor muito superior. Porque raio é que uma maluca qualquer não vem falar comigo? Sou obrigado a ver jogos em cima de jogos? Sou o maior poeta vivo. Ser ou não ser, eis a questão. Só não utilizo palavras herméticas. Dama oculta, vem ter comigo esta noite. Dá-me o teu coração e a tua beleza. Estou no Piolho à tua espera, antes que chegue o chato do costume. Um homem puxa tanto pela cabeça e é esta a recompensa que tem? Estou lúcido como Álvaro de Campos. Pensar é a minha profissão. Passo os pensamentos para o papel. Hoje sou absolutamente capaz de o fazer. Não há limites, ó velhote do boné. No piolho escrevo o poema infinito. Escreverei até morrer. Emendo aqui e ali. Escrita automática et voilá. Eia, Breton, eia, Péret, eia, Artaud. Volto aos surrealistas. Por um lado, ainda bem que as mulheres não vêm. Nem elas nem ninguém. Produzo livremente. Olha, sou um trabalhador da palavra! E esta, ein, ó Fernando Pessa? Um operário da palavra. Um proletário, logo eu. Tantas vezes acusado de preguiça, de desleixo, de vadiagem. Sou vadio mas produzo. Vou montar uma fábrica. Empresário, eu? Deus me livre! E o que é que Deus tem a ver comigo? E o que é que é Deus? Porque se fala tanto em Deus? Deus morreu. Deus nunca existiu. Sou o maior poeta vivo. Bebo copos com ninguém. Estou em tertúlia comigo próprio. Olho as horas. Penso. Todo eu sou pensamento. Mas a miúda da mesa do lado fala. Existe. O velhote do boné também e o Adriano e os outros empregados e o sr. Martins e a Via Láctea e o Universo talvez até Deus
Poderia passar a vida a ler lia, comia, bebia, mijava, cagava e nem sequer fodia porque não me faria falta aliás, acho que se dá demasiada importância ao sexo posso viver como Fernando Pessoa posso julgar-me ao nível dele acho que vou voltar aos crofts e às macieiras há vinte anos em Ofir estava num determinado caminho de excesso a seguir uma via muito própria era único mas depois desviei-me as moedas em cima da mesa chegam para o café as duas miúdas que entraram são engraçadas o ministro das Finanças deprime-me se tivesse a carteira recheada ficava noite fora a beber tive dinheiro em Junho mas fiquei com tonturas por causa dos quadrados e dos rectângulos no chão ouço os meus semelhantes mas eles não me conseguem surpreender porra a merda do café também dá cá um speed imagina se passasse a tomar seis ou sete por dia o que não seria? Passar o dia inteiro a produzir sou o maior poeta vivo sou o pateta da caneta sou aquele que espera e não cai vou parar um pouco vou mijar interromper a obra-prima já disse, não vejo as minhas primas há muito tempo até gostava muito de uma mas enfim, não lhe liguei armei-me em poeta há qualquer droga que me faz escrever assim ou vem tudo da mente? Demente já fui agora sou um cidadão respeitável que vem escrever para o Piolho e que não deixa dívidas há 20 anos andei aqui aos berros por causa do Fidel o Tintin no ecrã o capitão Haddock com mil raios etc e tal chegarei a casa vivo ou desfalecerei exausto de trabalho? Tomai lá, ó obreiristas! Quem me explora? Onde está o meu salário?

[texto de antónio pedro ribeiro]

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