Sunday, June 08, 2008

ALBERTO PIMENTA


Imitação de Ovídio - Alberto Pimenta (2006)
, 2006





Dele disse Luciana Stegagno Picchio (que tanto nos disse sobre o que fomos e somos em literatura) tratar-se do mais culto dos de Portugal. Dele se dizem, aliás, as mais extraordinárias coisas: esta não será a mais exorbitante – ou a menos verdadeira, para quem se interesse pela espeleologia das capacidades alheias. Quando um dia lhe perguntaram se era professor, disse: «Não. Dou aulas.» Alberto Pimenta nasceu no Porto, em 1937, e não pára de nascer de livro para livro (permitam-me o assomo: é raro...).

A sua obra inclui a poesia, a prosa, o ensaio, o happening. Uma das virtualidades de quanto escreveu é a distância – que ora se intensifica, ora se anula – entre a extrema liberdade, o fulgor irradiante que caracterizam a sua criação literária e o profundo rigor do seu ensaio (em que destacaria [deixando tanto de fora] A Magia Que Tira os Pecados do Mundo, de 1995). Em ambas as frentes, porém, são dominantes a irreverência (o mais comum dos lugares, afirmá-lo) da escrita, o desarmante conhecimento de processos e de fazeres, o habilíssimo manejo e boicote permanente das tradições e das vanguardas – «oh,/ como Petrarca sabia,/e como era tão interessante/fingir que não,/ e ainda mais tarde/a Margarida morreu por isso,/não sabia. a Traviata sim./acho que sabia./e também morreu./isso tem interesse para as pessoas» (p. 37, Imitação de Ovídio). A. P. está um pouco (na verdade, muito) para lá dessas tristes dicotomias, porque, nele, vida, corpo, sexo, cultura (à falta de outra palavra) são braços que se tocam, que se trocam, que se golpeiam, que pulsam – «é bom este gosto/de vida/porque/é quente/e sabemos que é nosso//quem consegue/retratar isso?/e como?» (p. 13) É uma voz (que ideia a minha!) invulgar, neste nosso país de marinheiros e poetas de água doce. Uma lira, se quiserem.

A. Pimenta não está na poesia para carpir males, fazer montra com o que saiba; não é a sua moeda de troca a salsugem baça e falsa da chamada cultura. Não come desse pão. Apenas poderemos esperar o inesperado – como no rifão quase pop –, o real feito por quem se expõe na arena nua e assustadora dos poemas, de outras jaulas. É alguém que se entrega em quanto tem para oferecer, em cada breve, em cada extenso pouco ou muito de si – «nós/com a boca/saboreamos/lanhos/que a nossa boca/abriu/e que nunca mais/cicatrizarão.» (p. 29)

A sua poesia vive dos atropelos de cada aspecto (seria impossível delimitar o seu escopo) da vida; no seu desconcerto, diz-nos mais sobre o podre de cada dia do que as mais puras derramadas lírico-doces elegias do nosso (des)contentamento. Em Alberto Pimenta, poesia é puro combate: contra o absurdo de viver, o absurdo radical, o tão informado, destruído mundo das palavras que se movem entre as ruínas e os cantos elevados do corpo – «sinto já/as tuas veias crescidas/do sangue que se apressa,/com um gesto do corpo todo/esperas…/ah, que eu as siga/não só com os olhos./repara como estou/preso agora/neste dobre de palavras!» (p. 16) Como podemos ler, depois de A. Pimenta, nessas tépidas águas em que navegam grande parte dos poetas de Portugal? Não há prebendas, não há prémios, não há Gallimard, nojo internáutico, náusea pós-moderna para este poeta tão pouco literário. Quanto mais perto da vida, mais longe de tudo isso. São dele estas palavras: «de todos os poetas vivos e mortos sou o menos poético por ser o mais exacto» (numa conferência intitulada A Metáfora Sinistra, em que trata o tema da masturbação, vista pela escrita).

Por que motivo, então, Ovídio? Como o poeta, nos seus Tristia, que Pimenta cita em epígrafe, há um diálogo com uma segunda pessoa – «nós somos um par de instrumentos solitários/também solidários/o nosso papel é pequeno/começa e acaba aí.» (p. 9) –, que vive dentro dos poemas (se me desculpam a frase) e que o poeta toca e chama com os seus versos. Talvez porque A. P. tenha, aqui, construído não um novelo de mitos, como Ovídio, nas Metamorfoses, mas um real que nos surge como mágico, como a face do que seja o amor – «algo em mim/caminha/ ao teu encontro» (p. 43). Talvez, ainda, porque Alberto Pimenta nos apresenta uma espécie de cosmologia que, sendo vivida no deserto de dois, se abre ao mundo que os recebe, que os lê, para se desintegrar, como o tempo. Tempo esse que, de resto, é veio essencial nestes versos, especialmente, mas não só, no segundo momento de Imitação de Ovídio. É um tempo de dentro, mas não solipsista e escavado; mas é, na verdade, interno – «este nosso futuro presente/dentro de si» (p. 25). O poema instala um tempo definitivamente não cronológico (e, contudo, como não o ser?), que corrompe, em silêncio, a lógica, o mundo, a duração «o tempo/é uma equação./nós sabemos que não». Será isso?




Hugo Santos, 2007
in www.rascunho.net

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