Tuesday, March 18, 2008
11.7.07
AS NOITES CONTADAS
Alguns poetas fazem questão de não elidir as entranhas da poesia nos poemas que publicam. Poetas viscerais, apresentam-se ao mundo como um eco dos infernos de onde (também) brotam os poemas. Não tendo nada a esconder, mostram tudo. Ou assim parece. Pois, por vezes, esse tudo esconde ainda uma literatura, como outra qualquer, com a sua história e a sua tradição. Falar de abjeccionismo é apenas uma forma de enquadrar academicamente tais poetas, por si só não enquadráveis, resistentes, como a rocha à força das marés, a qualquer tipo de academismo que esvazie esta poesia dos seus intentos mais directos: viver em conflito com todo e qualquer sistema de valores que tente impor-se pela repulsa do desejo. Em tempos, foram estes poetas considerados heréticos, blasfemos, pervertidos, heterodoxos, malditos, marginais, abjectos, etc. Mas é importante entender que, hoje em dia, estar à margem é também estar dentro, ainda que possa ser não estar com. É estar dentro de um universo cultural que vive e alimenta-se dos cultos, um universo que é já ele próprio a margem de um tecido social indiferente a tudo o que sejam poesia, literatura, arte, em suma cultura. O que temos hoje é um mundo que olha todo aquele que escreve poesia, seja que poesia for, da mesma forma que olha os marginais, os chamados inúteis, pois escrever poesia, mais ainda lê-la, já não é senão um acto de excepção. Fica o sentimento, no caso português, de um desconforto a reter mais pelo que manifesta do que pelo que pretende. Pois se em tempos os poetas podiam dar-se ao luxo de ambicionar a dinamitação das barreiras literárias, isso era porque as barreiras existiam. Legitimados por essa existência, tais poetas ameaçavam os paradigmas com uma força que lhes era inerente porque reconhecida. Hoje, podem apenas limitar-se à manifestação do seu desconforto. A força que têm é nula, as barreiras foram derrubadas, o mais que pode ser feito é impedir que voltem a ser erguidas. O espectáculo está circunscrito, com sorte, a uma, duas ou três centenas de curiosos, muitos deles também artistas neste circo que é o de quem escreve e o de quem lê poesia. Penso em poetas como A. Dasilva O., A. Pedro Ribeiro ou, o mais novo dos três, Vítor Vicente. Não se trata de um grupo, pois para que de um grupo se tratasse algo mais seria necessário que algumas afinidades estéticas. Porém, ainda que na poesia de Vítor Vicente a política seja outra, essas afinidades existem. No seu livro mais recente, As Noites Contadas, o autor de Esses Dias expõe as suas derivas nocturnas. O ambiente de boémia é transcrito num conjunto de poemas organizados em círculo, como uma noite que se põe num dia que nasce. Esse movimento circular, pautado pela volúpia e pela ressaca, é também o movimento de quem se repete nos modos de enganar a solidão. Palavra marcante nestes poemas, a solidão é tanto a de quem não se encontra entre os demais como a daqueles que sabem ser essa a inexorável condição de estarmos no mundo: «Sozinho, e bêbedo também, / serás aqui e em qualquer parte do mundo. / Quer passes a noite no porto de Amesterdão, // quer continues a pernoitar no Terreiro do Paço» (p. 48). Repare-se no paralelismo esboçado, apenas esboçado, entre o viandante, o náufrago das viagens físicas e interiores, e o inadaptado, o clochard. O álcool, o sexo e a literatura surgem como tubos de escape para esta solidão. Os poemas de Vítor Vicente estão repletos de envios, por vezes assumem-se como paráfrases a poemas de outros autores, citações truncadas, diálogos, referências. Só no irónico poema Num Café-Literário encontramos Proust, Beckett, Nietzsche, Baudelaire, Sartre, Lautréamont, Burroughs, Hermann Hesse, entre outros, evocados a partir dos títulos de algumas das suas obras mais conhecidas. São estas as companhias espirituais que o poeta traz à mesa da noite, companhias surgindo sub-repticiamente, por comparação, alusão ou lembrança, nas situações vividas fisicamente. E ainda que o tom seja geralmente irónico e descomprometido, por vezes inventivo («catoliconsciência», «embriagadoxcitados», «sempremfesta»), é impossível não ver poesia onde ela se impõe com a clareza de um murro no estômago:
UMA NOITE BRANCA
Recordo-me de pouco.
E do pouco que recordo, enfim,
recordo como se não tivesse sido
ontem.
Há em mim vestígios
que me permitem, vá lá,
tentar reconstituir
a noite passada.
Este tremelique de mãos, por exemplo,
fala por mil copos
e esses mil copos falam
por tudo quanto não consigo recordar.
Vítor Vicente, in Noites Contadas, Editora Canto Escuro, Capa e Ilustrações de Ana Biscaia, Maio de 2007.
in http://antologiadoesquecimento.blogspot.com
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